Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Joaquim Barbosa é um lugar

No momento em que o ministro Joaquim Barbosa se afasta precocemente do Supremo Tribunal Federal (STF), é oportuno lançar um olhar ponderado sobre o tratamento que lhe dá a mídia – tanto a imprensa escrita ou audiovisual quanto as redes sociais. De um modo geral, o ministro é associado aos movimentos implícitos ou explícitos de oposição ao regime petista, tanto por sua atuação no processo do “mensalão” quanto por eventuais declarações não muito bem humoradas. Nunca foi de fato ressaltado o alcance histórico do ministro como sujeito de fenótipo plenamente negro na presidência da mais alta corte de justiça do país.

É que não parece fácil à consciência coletiva espelhada pela mídia a percepção do negro como um lugar na trama das relações sociais no Brasil. Não é nova, entretanto, esta definição, já aventada no campo do pensamento sobre a nossa questão racial.

Como assim um “lugar”?

Para começar, diferentemente de espaço abstrato, lugar é a localização de um corpo ou de um objeto, portanto é espaço ocupado. Só que essa localização não é necessariamente física, pode ser a propriedade comum de um conjunto de pontos geométricos de um plano ou do espaço. Neste caso, a referência não é topográfica, mas topológica – a lógica das articulações do lugar, portanto, a teoria das forças, das linhas de tensão e atração, presentes no laço invisível que desenha a cidade como um lugar comum ou comunidade.

Nestes termos, lugar é uma configuração de pontos ou de forças, é um campo de fluxos que polariza diferenças e orienta as identificações. Por isso, pôde ser filosoficamente definido como a possibilidade “interna” de algo, isto é, como o espaço-tempo que preside de dentro ao esquema concreto das condições de existência de alguma coisa, de alguma forma, a exemplo das formas assumidas pelas instituições sociais.

Isso fica mais claro na tentativa de determinação de quem é ou o que é o negro na sociedade brasileira, quando se percebe que, acabada a velha argumentação biológica e racista para a especificidade de um genótipo branco, o negro é um lugar móvel: pode ser ocupado por uma enorme variação da cor da pele, a depender do jogo das relações sociais ou dos posicionamentos político-ideológicos.

Intervenção consciente

Não existe, portanto, nenhuma identidade racial negra e sim uma categoria social de confusa identificação fenotípica (com exceção dos casos de peles inequivocamente escuras), embora com claras identificações culturais em amplas parcelas da população direta ou indiretamente relacionadas a tradições lúdicas e religiosas que se configuram como uma marcante diversidade simbólica.

Mas como bem se sabe, existem os espaços de uma relação racial ideologicamente traçados ao longo de uma formação escravagista (a forma social mais bem organizada do país até a República, na visão do ensaísta Alberto Torres) que durou quatro séculos na sociedade nacional.

Essa relação racial preside ao poder endocolonial dos estamentos dirigentes e favorece a continuidade dos mecanismos seletivos e excludentes (dentre os quais, a educação) das camadas populares. As gradações de pigmentação mais claras aprendem a se distinguir, fundadas no imaginário colonialista da branquitude. Os sujeitos de pele clara já nascem investidos da aura familiar que cota, por preconceito cognitivo e gradativa confirmação social, o não-escurecimento fenotípico como uma “natural” vantagem patrimonial.

Pesquisadores têm encontrado claras evidências de que a noção de cor herdada do período colonial tem mais a ver com lugares sociais do que com matizes de pigmentação. Não raro, ao obter a sua alforria, o negro “mudava de cor”, propondo-se como “pardo” e, a depender do matiz fenotípico, como “moreno”. Justifica-se, assim, a existência de um lugar “negro” (entenda-se: não o lugar marcado do negro, mas o negro como lugar lógico-político) dentro da dinâmica contraditória das relações sociais.

É possível, portanto, a analogia política do “lugar” negro com o campo dos movimentos populares que esboçam um projeto histórico de sociedade e de educação. Um movimento dessa natureza pode de fato ser associado à luta organizada dos negros brasileiros contra o racismo há cerca de cem anos. Mas mesmo sem um “movimento”, esse lugar pode dar margem a uma intervenção consciente em domínios e em níveis diferenciados da existência individual e social.

Marcas indeléveis

O ministro Joaquim Barbosa configurou-se como o lugar de uma intervenção moral (às vezes associada pela mídia à velha moralidade udenista) no âmbito do Poder Judiciário. Isso transparece em questões de grande repercussão midiática (casos do “mensalão”, da proposta de multiplicação de tribunais nos estados), mas também em questões menos bombásticas como o julgamento de José Roberto Arruda, ex-governador do Distrito Federal, que só ocorreu, segundo a imprensa, “porque o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa determinou que a Justiça do DF julgasse o processo, derrubando uma liminar no STJ (Superior Tribunal de Justiça) que o suspendera”. Como se divulgou, mesmo com o depoimento do delator e com os filmes que mostravam o ex-governador recebendo maços de dinheiro, o voto de um desembargador do Distrito Federal havia entendido que “as provas não eram suficientes”.

Esse clarão de moralidade, que se impõe como uma macropedagogia pública no seio do Poder Judiciário, é maior do que os aspectos secundários atribuídos à personalidade do ministro: irritabilidade, tom imperial em certos discursos e comportamento avesso aos salamaleques da liturgia de ofício.

Em princípio, nada disso tem a ver com a cor da pele, qualquer outro ministro poderia ter tido atitudes semelhantes. Acontece, porém, que elas se configuraram como a intervenção consciente de um indivíduo a quem a imprensa tentou caracterizar várias vezes como produto aleatório de uma escolha autocrática (presidencial), em que teria pesado o marketing político da pigmentação.

Por acaso ou não, essa intervenção moral, que pressupõe uma simbiose de consciência do mundo e consciência de si, configurou por sua singularidade um “lugar”, em cujo centro estava, pela primeira vez na História do Supremo Tribunal Federal, um homem de pele negra. Um lugar, sim, porque independentemente de traços de moralidade individual, permanecem as marcas – coletivas, logo, éticas – de uma conscientização pública.

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Muniz Sodré e jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro