Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O braço forte da União

A poucos dias do final da Copa do Mundo, os procuradores da Advocacia-Geral da União (AGU) estavam bastante satisfeitos. Para eles, seu time jogou bem. “Olha, minha avaliação é extremamente positiva, sou suspeito para falar, mas vejo que a atuação da AGU foi muito articulada, organizada, consistente”, disse ao telefone o Procurador Geral da União, Paulo Henrique Kuhn, à Agência Pública. Ele se referia ao desempenho da força-tarefa da Procuradoria-Geral Federal (PGF) e Procuradoria-Geral da União (PGU), órgãos da AGU, para garantir a manutenção de serviços e acesso aos espaços e vias públicos durante o evento.

Desde maio até o final da Copa, amanhã, 414 advogados e procuradores trabalham em regime de plantão para monitorar e comunicar “notícias ou mesmo indícios de paralisações” de serviços públicos, interdições de rodovias federais e ocupação de prédios públicos – e acionar a Justiça a qualquer momento. “Vínhamos com um grupo em todo país monitorando individualmente, junto com as informações dos órgãos de inteligência e segurança, todas as intervenções que poderiam atrapalhar os jogos”, completa o Procurador-Geral Federal, Marcelo Siqueira.

Resultado: através de 12 ações judiciais, conseguiram efetivamente impedir ou reduzir greves de 10 categorias de servidores públicos, proibir manifestações que bloqueassem rodovias federais em 6 estados – Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Ceará, Paraíba e Sergipe – e piquetes ou manifestações no entorno do estádio Arena das Dunas e Arena Pernambuco e nos aeroportos do Rio de Janeiro.

Juntando todas as ações, o potencial de multas diárias pelo descumprimento das decisões da Justiça a pedido da AGU – no caso, greve ou bloqueios de vias – seria de R$ 15,8 milhões.

Multa de meio milhão de reais por hora

“Eu nunca vi isso”, diz Rui da Silva Pessoa, presidente do Sindicato Municipal dos Aeroviários do Rio de Janeiro (Simarj), que se responsabilizaria pelas multas mais pesadas entre as previstas nessas ações, se persistisse em greve. Na madrugada do dia 12 de junho, primeiro dia de Copa do Mundo, a Justiça Federal do Rio de Janeiro proibiu, a pedido da AGU e ANAC (Agência Nacional de Aviação), piquetes e bloqueios no interior e no entorno dos aeroportos do Antônio Carlos Jobim (Galeão), Santos Dumont e Jacarepaguá. A multa era de R$ 500 mil por hora – ou R$ 12 milhões por dia. “Fizemos uma greve que foi considerada legal, mas o governo entrou uma liminar aí que foi bastante pesada. Não restou outra alternativa, tivemos que suspender a greve”, diz ele.

O sindicato já havia concordado com a paralisação parcial, em cumprimento a uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT/RJ) que obrigava que 70% dos funcionários das empresas aéreas e 80% das empresas auxiliares de transporte aéreo continuassem trabalhando. Os trabalhadores reivindicavam um reajuste salarial acima da inflação, um adicional de 5% por produtividade, a revisão dos valores dos benefícios da cesta básica e vale-refeição e um pagamento adicional para a Copa. “Aqui no Rio tivemos aproximadamente mil voos extras e não teve nenhum aumento para o trabalhador. Evidentemente isso veio sobrecarregar o trabalhador”, explica Pessoa.

Assim, na manhã da quinta-feira, um grupo de trabalhadores – cerca de 150, segundo o sindicato, e 30 segundo a PM – fechou uma pista da Avenida Vinte de Janeiro, acesso ao aeroporto do Galeão. Segundo Rui, a escolha da data foi estratégica. “Todas as atenções estariam voltadas para o Brasil, é a maneira da gente mostrar que o nosso país não é essas mil maravilhas que o governo tenta passar para os outros países”.

Mas a passeata, acompanhada desde o começo pelo Batalhão de Choque, não durou muito – foi interrompida por uma liminar da 8ª Vara Federal proibindo manifestações nas imediações e dentro dos aeroportos.

“Conseguimos uma decisão de madrugada”, diz o Procurador-Geral Federal Marcelo Siqueira. “Estávamos monitorando com apoio dos órgãos de inteligência e segurança do governo e chegou a informação de que haveria uma movimentação desses empregados que traria prejuízo à operação normal do aeroporto. Também havia uma informação de que eles na madrugada se concentrariam no centro do Rio e se deslocariam em sequência para a estrada que liga ao aeroporto, para bloquear a estrada. Com isso [a liminar] realmente conseguimos que quem quisesse viajar do Rio para São Paulo conseguisse sem o menor problema”, diz o procurador.

Para Rui Pessoa, havia uma preocupação do governo em mostrar normalidade no país. “Nós sabemos o seguinte: determinação judicial a gente tem que cumprir. Mas aí foi abuso. Como é que a União, através da ANAC, entra com esse recurso e é acolhido? Foi um ultimato isso aí: ou parava ou a gente iria pagar uma multa de 500 mil reais por hora! Aí, paramos de imediato”.

A rápida ação no caso dos aeroviários do Rio foi apenas uma entre outras iniciativas da força-tarefa da AGU. Nos últimos dois meses o órgão conseguiu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a proibição de greves dos policiais federais, auditores da Receita Federal, servidores do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Fundação Nacional das Artes (Funarte) e Biblioteca Nacional, e dos servidores das instituições de ensino federais – entre essas a dos trabalhadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde a seleção dos Estados Unidos fazia seus treinamentos.

“Essas ações com declaração de ilegalidade de greves mostraram como a AGU atuaria em relação a todas as categorias, ou seja, a AGU teria uma atuação firme”, diz o Procurador-Geral da União, Paulo Henrique Kuhn. “A atuação da AGU e as decisões judiciais serviram como uma inibição para outras categorias”.

“Essa afirmação demonstra exatamente o espírito e intenção por trás da ação da AGU: a intimidação”, rebate Paula Martins, diretora para América do Sul da organização Artigo 19, que tem monitorado a violação da liberdade de expressão durante os protestos. “É preocupante que a AGU, além de agir nesse sentido, não se iniba em deixar explícito o uso abusivo de seu poder para tentar influenciar a decisão de órgãos que deveriam ser autônomos e independentes em suas ações e decisões”, opina a diretora da ONG.

Segundo ela, a posição do governo federal contraria o “próprio conceito do direito de greve: chamar a atenção das pessoas e inclusive causar certo incômodo para alcançar tal finalidade. “Esse direito é garantido constitucionalmente. Desde que utilizando meios pacíficos, os trabalhadores têm direito por lei de tentar dissuadir outros trabalhadores a integrarem a greve e de tentar convencer a opinião pública sobre suas pautas e demandas. O direito de greve, nesse sentido, é também elemento do exercício da liberdade de expressão.”

Lei Geral da Copa

Para o Procurador-Geral, porém, a responsabilidade assumida pela União na Copa era o maior argumento legal. “Veja bem, o Brasil convidou o mundo inteiro para vir para cá assistir uma Copa do Mundo, nós temos que garantir a segurança e a regularidade do evento, sob pena de a União ser responsabilizada por conta da Lei Geral da Copa. Se um jogo não acontece, se algo ocorre, a FIFA vai demandar a União. Existem muito contratos envolvidos nesse evento, prejuízos a patrocinadores, a consumidores que vieram do mundo inteiro, isso tudo foi previsto na Lei Geral da Copa que a União poderia ser demandada”, diz Kuhn.

Para os procuradores, a “excepcionalidade” da situação justifica também a expansão da atuação da AGU para além de sua competência normal. “Uma das questões que mais nos preocupou, demandou um estudo maior, foi como seria a atuação da AGU em problemas que não são de sua competência, que envolve Estados e Municípios”, diz ele. Exemplos: problemas nos serviços de limpeza nas cidades-sede, transporte público, e policiais militares. “Não tem a atribuição da AGU. Mas em função das obrigações da União na Lei Geral da Copa nós estudamos muito essa situação e entendemos que a União teria legitimidade para ajuizar determinadas ações”.

Foi o que aconteceu com a greve de servidores do transporte público em Natal, deflagrada dois meses antes do Mundial. O sindicato já estava cumprindo a determinação da justiça de manter de 70% das frotas de ônibus nos horários de pico e de 50% nos demais horários. Mas a AGU queria mais. “Nós entendemos que esse quantitativo era pouco para os dias de jogos”, diz Kuhn. Assim, obteve na justiça 90% da frota de ônibus em circulação, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, durante os dias de jogos em Natal. Além disso, os trabalhadores foram impedidos de realizar ações “tais como o fechamento de ruas e avenidas, depredação de ônibus e garagens, fechamento dos acessos às garagens das empresas, impedimento ao trabalho dos empregados que não aderiram ao movimento paredista, dentre outras que inviabilizem a manutenção do serviço público de transporte, conforme estabelecido”, de acordo com a decisão do Tribunal Regional do Trabalho no estado (TRT/RN).

“Foi uma atuação nossa diferenciada, não é o que normalmente costumamos fazer, mas foi no sentido de garantir uma circulação de toda a população local e dos torcedores no evento”, diz Kuhn.

A AGU conseguiu também impedir a realização de manifestações que bloqueassem ou impedissem a locomoção e o trânsito em rodovias federais e em locais próximos aos estádios e aeroportos do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, principalmente nos dias de jogos. A ação foi iniciada a partir de informações do setor de inteligência da PRF, segundo as quais manifestações “combinadas via redes sociais” poderiam bloquear rodovias e estádios de Natal e Recife.

Apoiada na decisão da 1ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) ficou livre para adotar “medidas cabíveis”. A multa por descumprimento da decisão judicial era de R$ 100 mil por hora, no mínimo. “Ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de bloquear tais vias de acesso e a Constituição adota como princípio nuclear o da proteção à dignidade da pessoa humana e do direito de ir e vir”, diz um trecho da decisão, que se estendeu às estradas de Alagoas, Ceará, Paraíba e Sergipe.

No princípio era a greve da PF

A primeira atuação da AGU para Copa foi em relação ao indicativo de greve anunciada pela Federação Nacional de Policiais Federais em maio. Nem mesmo a “operação-padrão”, um esquema de “zelo absoluto”, verificando as bagagens de todos os passageiros e todos os passaportes, resultando em trâmites mais demorados, em protesto às condições de trabalho, foi permitida.

As reivindicações dos agentes, escrivãos e papiloscopistas da Polícia Federal eram de melhores condições de trabalho e reestruturação da carreira. “Infelizmente o atual governo tem sucateado a Polícia Federal, e as péssimas condições de trabalho dos policiais federais nos aeroportos já foram comprovadas várias vezes por auditorias do Tribunal de Contas da União”, diz Renato Figueiredo, diretor de Comunicação da Fenapef.

Acatando a argumentação da AGU, que classificou o movimento grevista de “abusivo”, a ministra Assusete Magalhães, do Superior Tribunal Justiça (STJ) determinou o pagamento de multa diária de R$ 200 mil em caso de greve ou de operação-padrão. “A Copa do Mundo foi um dos argumentos”, explica o Procurador-Geral da União Paulo Kuhn. “Uma operação padrão poderia causar um retardamento do ingresso de torcedores no Brasil, e isso poderia gerar algum tumulto”, diz.

Para Renato Figueiredo, porém, “proibições genéricas” vão “na contramão da democracia”. “Os movimentos de greve estão sendo julgados por antecipação, sem que os dirigentes sejam ouvidos, e não sejam discutidas as razões das greves, que geralmente são a irresponsabilidade, omissão e descaso dos governantes”, diz.

Além da greve da Polícia Federal, a AGU também atuou para inibir greves de policiais militares. De acordo com Paulo Kuhn, a PGU ingressou na ação – já iniciada pelo Ministério Público Federal da Bahia – pedindo a declaração de ilegalidade da greve dos policiais, o que acabou ocorrendo em meados de abril. Em relação à greve da PM e dos bombeiros de Pernambuco, uma ação da AGU conseguiu bloquear R$ 1,1 milhão de associações de policiais por despesas da Força Nacional, deslocada em maio até o estado. A greve também foi considerada ilegal.

Para Marcelo Siqueira, da PGF, que também participou da força-tarefa da AGU, “atuação coordenada da Advocacia-Geral da União garantiu a movimentação livre das pessoas entre as cidades-sede e o completo funcionamento das forças de segurança” e se justifica já que essa não é uma “situação ordinária de segurança pública, por haver chefes de Estado e delegações estrangeiras no país”.

Ele admite, no entanto, que duas ações ajuizadas não se encaixam nesses casos: as que resultaram na proibição da greve durante a Copa dos funcionários do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da Fundação Nacional das Artes (Funarte) e da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Todos esses trabalhadores, vinculados ao Ministério da Cultura, reivindicavam a implementação da gratificação de qualificação, a racionalização dos cargos e a equalização dos vencimentos no sistema Minc. “Desde 2007, quando fizemos greve, houve acordo nesses pontos, e isso nunca foi cumprido”, diz Andre Andion Angulo, dirigente da Confederaçãodos Trabalhadores no Serviço Público Federal(Condsef). “O governo lia como oportunismo, mas a gente enxergou a Copa como uma oportunidade. Anunciamos a greve dia 12 de maio para ter um tempo de o governo entrar em negociação de fato com a gente”

O ministro do STJ que analisou a ação, Napoleão Nunes Maia Filho, acolheu o pedido da AGU e determinou que as entidades de classe se abstivessem de realizar qualquer paralisação. “Proíbo a realização de quaisquer bloqueios ou empecilhos à movimentação das pessoas no desempenho de suas atividades normais e lícitas”, escreveu o ministro. Todos tiveram que voltar ao trabalho, sob ameaça de uma multa de R$ 100 mil por dia aos sindicatos envolvidos.

“Aqui era mais uma questão de potencializar o que o Brasil tem a oferecer aos turistas que estão acompanhando o mundial, um legado não só diretamente ligado aos jogos de futebol”, diz Marcelo Siqueira. “Seria uma pena que eles [turistas] não pudessem desfrutar do que o país tem a oferecer. Isso traria um dano para ações futuras de incremento do turismo, uma fonte de receitas importante para a economia nacional”.

André Andion dá voz à indignação do conjunto dos trabalhadores: “Nunca antes na história dos servidores da cultura a gente sofreu uma judicialização do processo, o governo vindo tão pesado, tão violento, e justo um governo que vem da gestão de um partido chamado dos trabalhadores”.

Paulo Kuhn não vê, no entanto, limitação ao direito de manifestação. “Veja bem, temos que diferenciar as categorias. Temos categorias que, nesse momento, nessa circunstância, qualquer movimentação poderia gerar algum transtorno”. E, reforça, a decisão final é da Justiça. “Nada é feito de forma arbitrária. A União tem buscado o poder judiciário, que é o órgão competente para decidir”.

É justamente essa atuação afinada – todas as ações foram acatadas pela Justiça – que chama a atenção, destaca Pedro Ekman, coordenador do Coletivo Intervozes. “A atuação das forças repressivas, a aprovação de leis específicas ao evento que contrariam a Constituição Federal e as ações judiciais que cerceiam de antemão a liberdade de manifestação e expressão são medidas que claramente colocam os interesses privados e a vontade de controle muito a cima dos interesses públicos e direitos fundamentais”, diz. “Temos muitos jornalistas internacionais no país, os olhos do mundo estão todos voltados para o Brasil, e quanto mais possibilidade de sermos ouvidos mais instrumentos de censura são criados”. Para ele, “é estarrecedor que essa prática tenha se tornado o lugar comum da política de hoje”, em que o país vive uma democracia.

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Natalia Viana é jornalista