Não se sabe ao certo quem ressuscitou o vinil – e, com ele, os toca-discos –, mas a recente ressurreição da máquina de escrever, em plena era da informática, tem três comprovados responsáveis: o WikiLeaks, o ex-técnico da CIA Edward Snowden e o Kremlin. A velha máquina de escrever, acreditam alguns, pode ser uma arma eficaz no combate à xeretagem digital, aos cybersnoops que roubam e traficam dados de computadores sem deixar rastros.
Quando os primeiros documentos classificados do governo dos EUA vazados por Snowden escandalizaram o mundo, no ano passado, os russos foram os primeiros a exaltar a superioridade da máquina de escrever sobre o computador na guerra de espionagem. Hackers não invadem máquinas de escrever e o que delas sai impresso pode ser facilmente identificado e rastreado, argumentou na época o primeiro-ministro Dmitri Medvedev, dando vivas aos documentos à antiga, datilografados (e criptografados) em papel e destruídos após a leitura. “Para manter segredo, o método mais primitivo é o mais seguro: uma caneta na mão ou um teclado à antiga ao alcance dos dedos”, enfeitou Medvedev.
Ao confirmar, via WikiLeaks, que a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos o espionara durante a reunião do G-20 em Londres, quatro anos antes, o ex-presidente russo revelou que o Kremlin acabara de encomendar 20 máquinas de escrever criptográficas, para acrescentar às que os Ministérios da Defesa e da Emergência já usavam para rascunhos e informes secretos preparados para o atual presidente, Vladimir Putin.
Os russos não estão mais sozinhos nessa onda. Sob o impacto das incômodas revelações sobre atos de espionagem praticados pelos Estados Unidos na Alemanha (grampearam o telefone do chanceler Gerhard Schröder em 2002, o da atual chanceler, Angela Merkel, em 2013, descobriu-se dia desses que dois agentes de segurança do governo alemão foram subornados pela CIA), políticos alemães ameaçaram regredir ao “método primitivo” adotado pelos russos. Na terça-feira, com a expulsão do chefe da CIA na embaixada americana em Berlim ainda nas primeiras páginas, a regressão vazou dos conchavos do Bundestag (Parlamento alemão) para um programa de televisão. O próprio mandachuva do Bundestag, o democrata-cristão Patrick Sensburg, confirmou a volta ao analógico, que seu colega Christian Flisek considera uma ideia absurda, um disparate tecnológico. Além de inexequível, acrescentou outro parlamentar, desconfiado de que ninguém mais fabrique máquinas de escrever.
Ainda se fabricam, sim. Inclusive na Alemanha. Foi à Triumph Adler que os russos encomendaram as tais 20 máquinas de escrever, no ano passado. Com teclado em cirílico. As maiores fábricas de máquinas de escrever e calcular do mundo sucumbiram ao obsoletismo a que seus produtos foram condenados pela disseminação do computador. Poucas se reciclaram e renasceram eletrônicas ou mudaram de ramo. A americana Smith Corona parou de fabricar suas máquinas mecânicas e elétricas e pediu falência em 2000. A italiana Olivetti, que havia comprado a nova-iorquina Underwood nos anos 1950, transformou-se numa empresa de telecomunicações. A alemã Olympia fechou sua linha de montagem em 1992. A japonesa Brother operava com quatro modelos eletrônicos, até algum tempo atrás. A indiana Godrej & Boyce, de Mumbai, partiu para outra. A sueca Facit, há muito brasileira, ainda produz aqui alguns artefatos mecânicos.
Pedido de desculpas
Embora bastante utilizadas em lonjuras muito pobres e mal servidas de energia elétrica da África e da América Latina, as máquinas de escrever não são um anacronismo exclusivo do Terceiro Mundo. Várias agências do governo americano e outras instituições, como maternidades e funerárias, as utilizam para preencher formulários e papelórios do gênero. A prefeitura de Nova York comprou milhares delas para o Departamento de Polícia, no final da década passada. Todo o sistema prisional dos Estados Unidos, aliás, ainda datilografa. Presidiários podem usar máquina de escrever, mas computador, tablet ou outros aparelhos eletrônicos, não. Para evitar que escondam o que quer que seja no interior de suas máquinas, elas, especialmente fabricadas pela Swintec, são claras, quase transparentes.
Sem dúvida mais transparentes que a política de segurança e inteligência adotada pelo governo Obama. Durante sua campanha à presidência, Obama criticou a militarização e a politização da comunidade de informação e prometeu coibir-lhe os abusos e as operações clandestinas. Antes mesmo de eleito, montou um time de conselheiros com integrantes da equipe de George Tenet, a mesma que fornecera ao governo Bush as informações fajutas sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. Foi o adjunto de Tenet, John McLaughlin, quem escreveu o discurso com que Colin Powell, secretário de Estado de Bush, justificou na ONU a invasão do Iraque. Eleito, Obama apontou John Brennan, outro remanescente da gestão anterior, para dirigir a CIA.
Se não é um dissimulado a serviço da direita republicana, Brennan é um rematado incompetente. Manteve o presidente alheio aos faux pas da agência na Alemanha; não o impediu de pedir a colaboração de Angela Merkel em seu plano de pressão contra Putin um dia depois de um jovem agente alemão confessar ter passado segredos à CIA. A chanceler esperando um pedido formal de desculpas, e Obama mendigando ajuda para peitar o neoimperialismo russo. Por que ainda não demitiu Brennan é um mistério.
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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo