Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O acirramento da rivalidade Brasil-Argentina

A Copa do Mundo deste ano comprovou o acirramento da rivalidade entre brasileiros e argentinos no futebol, acredita Ronaldo George Helal, sociólogo e professor de comunicação da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Uma mudança de comportamento que acontece já há alguns anos.

Com pós-doutorado voltado à rivalidade futebolística entre as duas torcidas e a sua cobertura jornalística, Helal confessou, em entrevista à Folha, preocupação com a aparição de manifestações de intolerância no que antes era apenas brincadeira.

Isso pode não soar bem aos ouvidos dos brasileiros, mas ele acredita que os argentinos começaram a perceber o que os seus vizinhos já diziam sobre eles há muito tempo. “Começaram a revidar”, constata.

Helal popularizou no Brasil a frase de Walter Vargas, um dos fundadores do diário esportivo Olé, de Buenos Aires: “Os brasileiros amam odiar os argentinos. Os argentinos odeiam amar os brasileiros.” O professor acredita que isso mudou. “Os argentinos agora já estão amando nos odiar também.”

“Já teve propaganda de cerveja chamando argentino de maricón

Na Copa do Mundo, em todos os jogos da Argentina, os brasileiros iam para apoiar a outra seleção. Os argentinos compuseram uma música, Brasil decime que se siente, para nos ironizar. A rivalidade futebolística entre os dois países mudou nos últimos tempos?

Ronaldo George Helal – Mudou e isso me preocupa. Com a popularização da internet, os argentinos começaram a ter ciência de como o brasileiro torcia contra eles. Estão começando a revidar mais. E o brasileiro não consegue perceber que tem mais culpa nessa história do que os argentinos.

Por quê?

R.G.H. – Nunca vi um comercial sobre Copa do Mundo na Argentina que tenha como protagonista um brasileiro. Neste ano foi um Mundial que tivemos menos comerciais de argentinos no Brasil. Se você olhar 2010, 95% das propagandas na TV que usavam a Copa, a vítima da gozação era sempre o argentino.

O senhor quer dizer então que a maior parte da responsabilidade pelo acirramento dessa rivalidade é dos brasileiros?

R.G.H. – Os brasileiros não têm a humildade de reconhecer que fazem muito mais sacanagem com eles do que eles conosco. Olhe o que a gente canta sobre eles. Olhe as piadas que a gente conta sobre argentinos. Já teve propaganda de latinha de cerveja no Brasil chamando argentino de maricón. E se eles começarem a achar também que brasileiro não vale nada? E se alguma marca de cerveja de lá fizer comercial chamando brasileiro de “viado”? A Dilma [Rousseff] vai ter de intervir? O que a gente faz é engraçado e o que eles fazem é apelação? Acho que precisamos refletir sobre isso.

“Isso é culpa dos meios de comunicação”

Mas a gente vê imagens, por exemplo, de um torcedor argentino que levou uma réplica de coluna vertebral para gozar da lesão do Neymar.

R.G.H. – A tendência é sempre pegar o todo por sua parte. Pegar um torcedor que levou uma coluna para tirar sarro do Neymar e achar que todo argentino faz isso. No Brasil, a gente dá muita importância ao que o Olé [diário esportivo de Buenos Aires] faz e não entende que se trata de um jornal debochado. A capa do Olé é para fazer uma brincadeira. Olhe a quantidade de brasileiros que entrou na conta do [colombiano] Zúñiga [responsável pela lesão do Neymar] e da filha dele no Instagram. Disseram que vão matá-lo, que a menina merecia ser estuprada… Essas pessoas te representam? Representam o que é o torcedor brasileiro? E se os colombianos pegarem esses exemplos para dizer que “esses são os brasileiros”, nós vamos gostar? Não vamos.

A frase “os brasileiros amam odiar os argentinos e os argentinos odeiam amar os brasileiros” ainda é válida?

R.G.H. – Já mudou. Eles estão amando nos odiar também. Começaram a revidar. Natural. Por que eles achariam o futebol brasileiro legal se percebem que o Brasil está sempre torcendo contra? Isso é muito culpa dos meios de comunicação. Quando a Argentina foi eliminada pela Alemanha, na Copa de 2006, eu estava em Buenos Aires. Havia um dono de banca que sempre guardava jornais para mim. Ele me falou “Não vou torcer mais para vocês, não.” Perguntei o motivo. Ele me mostrou que o Clarín [o mais importante diário argentino] havia reproduzido matérias da Folha, O Globo, Zero Hora, Estado de Minas… Todos os principais jornais brasileiros se regozijando da derrota argentina. Eles não tinham ciência de que a gente fazia isso.

“As relações mudaram para pior”

Houve uma percepção de que jornais argentinos fizeram brincadeiras quando o Neymar se lesionou.

R.G.H. – Você está se referindo ao Olé e é uma percepção errada. Minutos após a contusão do Neymar, eles colocaram a manchete “Seguem chorando”. Mas tinha a ver com o jogo anterior, quando vários jogadores brasileiros choraram em campo. O editor do jornal não sabia da gravidade da lesão. Ninguém sabia. Quando soube, mudou para “É para chorar”. Mas quem tem de responder ao deboche do Olé são os jornais esportivos brasileiros. Não é a Folha, O Globo, o Estadão. A importância que o Olé adquiriu na imprensa brasileira é mais uma coisa que me chama a atenção.

O senhor vê que está se ultrapassando o limite da brincadeira?

R.G.H. – A intolerância me preocupa. Uma coisa é a brincadeira. Outra é ser intolerante. Por isso, evitar um jogo no Maracanã [entre as duas seleções] talvez tenha sido o melhor. O odiar deles começar a ficar parecido com o nosso me preocupa para o futuro. Até há alguns anos, nós poderíamos falar de relações jocosas. O problema é quando começa a aparecer intolerância nas comemorações.

Mas os argentinos não torciam contra o Brasil naturalmente antes?

R.G.H. – A maioria, não. Veja bem. Eu fiz um trabalho de pós-doutorado que analisa os Mundiais de 1970 a 2002. A correspondente do Clarín em São Paulo fez uma matéria, espantadíssima, porque os jornalistas brasileiros vibraram com a derrota da Argentina e a eliminação contra a Holanda em 1998. Ela terminava a matéria questionando: “Não sei se é porque eles não queriam jogar contra a Argentina ou se seriam realmente capazes de torcer por um país europeu contra nós, irmãos latino-americanos.” Eu li aquilo e pensei: “Tolinha.”

É possível reverter esse acirramento da rivalidade?

R.G.H. – É difícil reverter agora. Depende muito dos meios de comunicação. Essas ideias de “ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é melhor ainda” [frase do narrador Galvão Bueno]… A gente criou um monte de coisas com argentinos que, até 1998, quando não havia internet, eles não sabiam que existiam. As relações mudaram muito nos últimos anos. Para pior. A animosidade é recíproca. Tudo o que vai, volta. Brincadeira só de um lado é engraçada? A publicidade argentina até agora não respondeu à brasileira. Um dia vai responder. É natural. E aí? Como vamos reagir?

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Alex Sabino, da Folha de S.Paulo