Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Somos um povo melhor que os árabes’

Muito em breve irei embora daqui. Em poucos dias, deixaremos Jerusalém, deixaremos o país. Ontem, compramos maletas para as crianças. Não precisaremos levar muita roupa, deixaremos nossas roupas de inverno; em todo caso, elas não aquecem o suficiente, dado o frio que faz no sul de Illinois, nos EUA. Precisaremos apenas de algumas coisas, até nos instalarmos. Talvez as crianças levem alguns livros, dois ou três em árabe e alguns outros em hebraico, para que não esqueçam os idiomas. Mas já não sei se quero que meus filhos se lembrem deste lugar, tão amado e tão amaldiçoado.

O plano original era sair no mês que vem para um ano sabático. Semana passada, porém, compreendi que não posso mais permanecer aqui e pedi ao agente de viagem que nos tirasse daqui o quanto antes, “e, por favor, arranje apenas passagens de ida”. Em poucos dias desembarcaremos em Chicago e eu sequer sei onde passaremos o primeiro mês, mas nós vamos dar um jeito.

Tenho três crianças, uma filha que já tem 14 anos, e dois filhos, com nove e três anos. Vivemos em Jerusalém ocidental. Somos a única família árabe vivendo em nossa vizinhança, para onde nos mudamos há seis anos. “Você pode escolher dois brinquedos”, dissemos em hebraico esta semana para o nosso filho pequeno que estava em seu quarto, olhando fixamente para as suas caixas de brinquedos, e ele começou a chorar, apesar de nossas promessas de que iremos comprar qualquer coisa que ele queira quando chegarmos lá.

Também tenho de decidir o que levar. Só posso escolher dois livros, disse a mim mesmo, diante das prateleiras de livros em meu quarto de estudo. Exceto por um livro de poesia de Mahmoud Darwish e por uma coleção de histórias de Jubran Khalil, todos os meus livros estão em hebraico. Desde os 14 anos de idade, raramente li um livro em árabe.

Colégio interno em Jerusalém

Vi uma biblioteca pela primeira vez quando tinha 14 anos. Vinte e cinco anos atrás, o meu professor de matemática, na cidadezinha de Tira, onde nasci, veio até a casa dos meus pais e disse-lhes que, no ano seguinte, os judeus abririam uma escola para alunos superdotados em Jerusalém. Ele disse ao meu pai que achava que eu deveria me inscrever. “Lá será melhor para ele”, lembro dele dizendo aos meus pais. Eu entrei e, quando estava com a idade da minha filha, deixei minha casa e fui para um colégio interno judaico em Jerusalém. Foi muito difícil, quase cruel. Chorei quando o meu pai me abraçou, me deixando na entrada da nova e grandiosa escola, muito diferente de tudo o que eu já havia visto em Tira.

Escrevi certa vez que a primeira semana em Jerusalém foi a pior semana da minha vida. Eu era diferente, estranho; minhas roupas eram diferentes assim como o meu idioma. Todas as aulas eram em hebraico – ciência, Bíblia, literatura. Sentei-me ali sem entender uma palavra. Quando tentei falar, todos riram de mim. Quis muito correr de volta para casa, para a minha família, a cidadezinha e os amigos, para o idioma árabe. Chorei ao telefone com o meu pai, pedindo que viesse me apanhar, e ele disse que apenas o começo é difícil e que em poucos meses eu falaria hebraico melhor que os demais.

Lembro que, na primeira semana, o nosso professor de Literatura pediu que lêssemos O apanhador no campo de centeio, de Salinger. Foi o primeiro romance que li. Levei várias semanas para lê-lo e, quando terminei, percebi duas coisas que mudaram minha vida. A primeira foi que eu podia ler um livro em hebraico e a segunda foi uma profunda compreensão de que amava os livros.

O meu hebraico se aperfeiçoou muito rapidamente. A biblioteca do colégio interno só tinha livros em hebraico e, assim, eu comecei a ler autores israelenses. Li Agnon, Meir Shalev, Amos Oz, e comecei a ler sobre o sionismo, sobre o judaísmo e a construção da terra natal.

Ao longo desses anos, também comecei a entender minha própria história e, sem ter planejado, comecei a escrever sobre os árabes que vivem em um colégio interno israelita, na cidade ocidental, em um país judeu. Comecei a escrever, acreditando que tudo o que eu tinha de fazer para mudar as coisas seria escrever sobre o outro lado, contar as histórias que ouvia da minha avó. Escrever como o meu avô foi morto na batalha de Tira, em 1948, como a minha avó perdeu todas as nossas terras, como ela criou o meu pai, sustentando-o como colhedora de frutas paga por judeus.

Contando histórias em hebraico

Queria contar, em hebraico, sobre o meu pai, que foi preso durante muitos anos, sem julgamento, por suas ideias políticas. Queria contar aos israelitas uma história, a história da Palestina. Certamente, quando eles lerem, compreenderão, quando eles lerem, irão mudar; tudo o que tenho de fazer é escrever e a ocupação terminará. Tenho apenas de ser um bom escritor e libertarei o meu povo dos guetos onde ele vive, contarei boas histórias em hebraico e serei salvo, outro livro, outro filme, outra coluna de jornal e outro roteiro para a televisão e os meus filhos terão um futuro melhor. Graças às minhas histórias, um dia nós nos tornaremos cidadãos iguais, quase como os judeus.

Vinte e cinco anos escrevendo em hebraico e nada mudou. Vinte e cinco anos agarrado a uma esperança, acreditando que não é possível que as pessoas sejam tão cegas. Vinte e cinco anos durante os quais tive poucas razões para ser otimista, mas continuei a acreditar que um dia este lugar onde os judeus e os árabes vivem juntos seria uma única história, na qual a história do outro não fosse contestada. Que um dia os israelitas iriam parar de contestar o Nakba (ver aqui), a ocupação e o sofrimento do povo palestino. Que um dia os palestinos estariam dispostos a perdoar e, juntos, iríamos construir um lugar que fosse digno de se viver.

Vinte e cinco anos que escrevo, tendo conhecimento de críticas desagradáveis de ambos os lados, mas na semana passada eu sucumbi. Na semana passada, alguma coisa se quebrou dentro de mim. Quando a juventude judaica desfila pela cidade gritando “Morte aos árabes”, atacando árabes apenas porque eles são árabes, percebo que perdi a minha pequena guerra.

Prestei atenção nos políticos e na mídia e sei que eles estão diferenciando entre raças, entre povos. Aqueles que se tornaram poderosos dizem expressamente o que a maioria dos israelenses pensa: “Nós somos um povo melhor que os árabes”. Em debates dos quais participei, foi dito que os judeus são um povo superior, com mais direito à vida. Perco a esperança ao saber que uma maioria absoluta da população não reconhece o direito à vida de um árabe.

“Pai, eu sei disso há muito tempo”

Após as minhas últimas colunas, alguns leitores suplicaram para que eu fosse exilado em Gaza, ameaçaram quebrar minhas pernas, sequestrar meus filhos. Vivo em Jerusalém e tenho alguns vizinhos e amigos judeus maravilhosos, mas ainda não posso levar meus filhos a acampamentos ou a parques com os seus amigos judeus. Minha filha protestou furiosamente, dizendo que ninguém saberia que ela é árabe, por causa do seu hebraico perfeito, mas eu não liguei. Ela se trancou no quarto e chorou.

Estou agora diante das minhas estantes, com o Salinger na mão, o mesmo que li aos 14 anos. Não quero levar nenhum livro, decidi, tenho de me concentrar em meu novo idioma. Sei como é difícil, quase impossível, mas devo encontrar outro idioma para escrever, meus filhos terão de encontrar outro idioma para viver.

“Não entre”, gritou com raiva minha filha quando eu bati na porta. Entrei assim mesmo. Sentei ao lado dela na cama e, embora estivesse de costas para mim, sabia que ela estava ouvindo. Ouça, eu disse, antes de repetir para ela exatamente a mesma frase que meu pai me disse, 25 anos atrás. “Lembre-se, faça o que fizer na vida, para eles você sempre, mas sempre mesmo, será uma árabe. Entende?”

“Entendo”, ela disse, me abraçando forte. “Pai, eu sei disso há muito tempo”.

“Logo nós vamos embora daqui”, disse eu, enquanto bagunçava o seu cabelo, do jeito que ela odeia. “Até lá, leia isto”, e dei a ela O apanhador no campo de centeio.

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Sayek Kashua é um jornalista e escritor árabe-israelense cujos romances foram traduzidos para 15 idiomas. O filme Dancing arabs (2014) foi baseado em seu primeiro romance