Pensando no caso de uma democracia representativa, a descoberta de um escândalo político representa simbolicamente a quebra da confiança que um povo tem em relação aos seus representantes. A fraqueza e sentimento de impotência quanto ao fato de alguém, dotado de poderes para manipular instrumentos e recursos a seu favor, em detrimento da sociedade à qual, em tese, se encontra a serviço geram um cisma e desconfiança quanto a todo e qualquer tipo de poder político. Por sua vez, os meios de comunicação, neste caso, ocupam um lugar especial no chamado jornalismo político, tendo em vista o fato de que tais escândalos tornam-se públicos através do intenso trabalho jornalístico. Em virtude disso, uma atenção ao jornalismo político, confundido atualmente com “jornalismo de escândalos políticos de corrupção”, devido aos contornos adquiridos pela maneira como este tipo de notícia é veiculado, ganha proeminência pelas possibilidades de acesso à informação política, à verdadeira informação política. Em uma perspectiva geral, os ganhos sociais, em termos de politização, de uma informação política bem conduzida podem ser incomensuráveis. Caso contrário, os danos causados por exploração de imagem, personalização das figuras envolvidas, entre outros elementos, são inestimáveis.
Pensando especificamente em seu valor informativo, escândalos de corrupção devem ser obrigatoriamente trazidos à tona pelos profissionais de imprensa. É a velha questão referente ao interesse público. Contudo, pensando precisamente no elemento político e, por conseguinte, na questão social, a informação política é provida de um valor que, em tese, pautaria as ações populares em relação ao processo político em sua totalidade. A ideia é de que através de tais informações o público leitor elaboraria concepções prévias acerca dos atores políticos, julgando suas ações e pesando o seu valor no interior da comunidade em que participa. Assim, a uma atitude tornada pública pelo jornalismo político, corresponderia, teoricamente, uma resposta social, de aprovação ou rejeição, a estar diretamente ligada aos valores sociais de tal comunidade. Isso porque esse grupo tem necessidades que podem ser realizadas somente na esfera política e, portanto, depositam confiança nos representantes eleitos.
Diante deste quadro, à sistemática e irrefreável divulgação de escândalos de corrupção – que, da maneira como se tornam públicos, são associados praticamente como o único tipo de informação política de interesse, tendo em vista os destaques nas páginas de jornais e revistas – corresponde uma resposta social de rejeição política marcada pela presumível desconfiança da população quanto aos seus representantes. Inevitavelmente, a política passa a ser vista como algo fundamentalmente negativo. O chamado feedback, quando acontece, dá-se de forma socialmente desconstrutiva, sem qualquer contribuição social, tendo em vista as possibilidades de construção de valores, de consensos, entre os atores sociais, subestimando o potencial informativo do jornalismo político e o potencial de elaboração de julgamento e concepções existente na própria sociedade. Assim, a avaliação que se faz de um ator político, envolvido em um escândalo de corrupção, dá-se essencialmente na esfera do pessoal, ressaltando – normalmente –, de forma negativa, o seu caráter. A apropriação de dinheiro público, o desvio de verba, enriquecimento ilícito, compra de votos, ou qualquer outra coisa parecida, passa a estar associada diretamente à ideia de pessoa má, de péssima índole, mais que propriamente às consequências políticas, em se tratando da esfera política, dificultando toda e qualquer possibilidade de entendimento quanto ao funcionamento da política propriamente dita e as suas benesses para o povo. Por fim, tudo isso desemboca em uma despolitização do debate em torno da corrupção.
Alma pura
As consequências de tal despolitização se fazem visíveis de forma praticamente imediata. O reducionismo da informação política, cada vez mais restrita à ideia de descoberta de escândalos de corrupção – e a forma como tais escândalos são apurados – funciona definitivamente como uma barreira para o entendimento sobre o funcionamento da política como um todo. Por conseguinte, desenha-se a ideia de que a esfera política compreende uma batalha entre o bem e o mal, conferindo a imagem de que existem sujeitos muito bons que devem combater os seus opostos, algozes da sociedade. Os maus assim o seriam por natureza, tal como os bons. É praticamente todo um ordenamento divino a configurar a realidade em que a sociedade se encontra. Este fato torna-se ainda mais grave quando se explora publicamente as personalidades “criadas” neste discurso jornalístico, jactando os heróis e transferindo mais explicitamente o debate para outras instâncias a flertarem diretamente com as colunas sociais.
Ainda que não seja uma exclusividade da mídia brasileira, a máquina de produção de escândalos políticos não pode parar – aliás, já foi dito, como jornalismo, tais notícias devem se tornar públicas. Contudo, de forma alguma a política é somente isso. Não há uma fórmula para a resolução do problema. Mas, avaliações cuidadosas de cada caso de corrupção tornados públicos são prementes – porém, no olhar do autor deste texto, são raras ou, quando existem, encontram-se em linguagem de difícil acesso ao público comum ou são ofuscadas pelos desdobramentos personalistas a prevalecerem nas manchetes apresentadas em letras garrafais.
Deste modo, não se trata somente de criminalizar figuras públicas, devendo-se ir mais além ao se compreender as questões motivadoras a impulsionarem suas ações corruptivas, coisa que tampouco o jornalismo político brasileiro tem deixado vazio. Assim sendo, o desprezo quanto ao potencial julgador da própria sociedade brasileira, em sua assimilação da notícia, da informação, encaminha a discussão novamente para o plano do maniqueísmo, do mau e do bom, e do julgamento de personalidades. A imagem que se tem, em consequência disso, é a de que a sociedade brasileira, subestimada, está sempre à espera de uma alma pura salvadora, detentora dos elementos morais mais estimados por todos e que, portanto, se tornaria o bastião da justiça ao extirpar o mal da política. E, como a política é má, o bem tem de desbravá-la com uma coragem descomunal, purificando a tudo e a todos.
Compromisso moral
Essa é a lógica do personalismo. Trata-se de uma lógica que, pensando no exemplo do Mensalão, impede de ser vista a questão das maiorias políticas não conquistadas pela bancada do PT em 2002 – travando muitas de suas ações parlamentares – e que motivou, injustificavelmente, a negociação de votos e, consequentemente, sua compra com o desvio de fundos. Não é uma justificativa, mas sim o entendimento de uma parte do que originou a merecidamente condenada conduta petista. O entendimento deste princípio está diretamente ligado, por exemplo, à compreensão do funcionamento de um presidencialismo de coalização e todas as suas consequências. O esvaziamento da informação política, nestes termos, tende a impedir uma avaliação mais justa por parte da própria população quanto aos mecanismos políticos, as maiorias políticas, as coligações partidárias etc. Nestes termos, dificilmente um julgamento social passará pelo questionamento quanto ao funcionamento do próprio sistema político, como, neste caso, o presidencialismo de coalizão. Logo, possíveis alterações neste sistema, advindas do questionamento quanto à sua operacionalidade, têm mais possibilidades de ocorrerem unilateralmente, sem passar diretamente pela participação popular que, desinformada pela grande mídia em sua incapacidade, ou desinteresse, de promover uma correspondência entre as denúncias de corrupção e uma real informação política, encontram-se desprovidas de instrumentos verdadeiramente sociais e políticos para a mobilização.
A argumentação apresentada acima é menos pessimista do que parece, pois reconhece a existência da possibilidade de politização, de compreensão da esfera política por parte da sociedade, a partir da divulgação de informações políticas como a dos escândalos de corrupção. Isto é, pode-se compreender e criticar positivamente, por exemplo, o funcionamento do presidencialismo de coalização a partir do Mensalão. Num primeiro momento, isso é o óbvio. Mas, como visto acima, tal fato pode ser obscurecido pela forma como as informações são conduzidas, de maneira a adquirirem, ou não, tonalidades políticas. Como se pode perceber, as perdas sociais diante de condutas como esta são ainda mais visíveis em um ano eleitoral. Torna-se comum, neste caso, a associação da imagem do candidato X a atores de um escândalo político específico pelo fato de ambos pertencerem ao mesmo partido. Ademais, o combate à corrupção vira uma bandeira vazia ao se apoiar quase que exclusivamente em variantes personalistas, qualidades pessoais versus defeitos pessoais. Aqui, a propaganda política, na esteira da despolitização, adquire contornos perniciosos para uma possível e consistente mobilização política. Quem perde com tudo isso é o povo, e, inevitavelmente, o próprio jornalismo.
Enfim, não se quer dizer que somente isso basta para a transformação da política e o consequente impedimento de seu posicionamento isolado da sociedade enquanto esfera política. Trata-se, pelo contrário, de uma ferramenta viável, às mãos, que diz respeito diretamente ao compromisso moral dos meios de comunicação e de seus profissionais. O espaço para a discussão pública, com as novas tecnologias de comunicação, se dá juntamente com a facilidade de acesso aos meios de comunicação evidenciada pela revolucionária internet. Novamente, neste caso, o aparentemente piegas compromisso social do jornalismo adquire uma relevância com contornos inimagináveis. Caso contrário, resta apenas esperar por uma pessoa gigantescamente boa para resolver todos os problemas. E dá-lhe espera.
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Wallace Faustino da Rocha Rodrigues é professor