O Rio Grande do Sul acordou na segunda-feira (4/8) com o jornal Zero Hora apontando a sua mira para mais uma discussão envolvendo as escolas gaúchas. Como de praxe, os veículos de comunicação do Grupo RBS (que nos últimos anos se definem como os defensores da “melhor educação”) imprimiram o seu pensamento acusando o Conselho Estadual de Educação (CEED) de estar querendo interferir na administração e na gestão das escolas públicas e privadas do Estado.
Com a imagem de um quadro de sala de aula com a seguinte frase sobreposta, “Sem poder expulsar nem suspender”, Zero Hora deu início a mais uma de suas matérias de página inteira. Logo abaixo da foto havia um subtítulo: “Parecer em avaliação pelo Conselho Estadual de Educação prevê que escolas não reprimam a indisciplina com afastamento ou transferência”.
A reportagem é assinada por Guilherme Justino e representa a primeira das nove matérias publicadas sobre o tema entre a segunda e a quarta-feira (dia em que foi adiada a votação do parecer 578). Com o objetivo de colaborar nessa discussão importante e necessária, por meio de uma reflexão crítica, procurei elencar e analisar o material reproduzido por Zero Hora durante esses dias que antecederam a reunião do CEED a fim de problematizar o conjunto de saberes que compõe as informações publicadas durante a semana pelo jornal.
A palavra expulsão/expulsar no título
A tabela abaixo evidencia os elementos utilizados para salientar as pistas para as minhas análises.
DATA | TÍTULO | SUBTÍTULO | AUTOR | LOCALIZAÇÃO DENTRO DO JORNAL |
04/08/2014 | Sem poder expulsar nem suspender | Parecer em avaliação pelo Conselho Estadual de educação prevê que escolas não reprimam a indisciplina com afastamento ou transferência. | Guilherme Justino | Reportagem de página inteira. No cabeçalho consta “Educação | Comportamento em debate”. |
04/08/2014 | Norma prevê que escolas não possam mais expulsar alunos | Conselho Estadual de Educação analisa parecer que impediria afastamento com punição por indisciplina na rede pública e privada de ensino básico. | Guilherme Justino | Caderno Vestibular de Zero Hora. |
04/08/2014 | Sinpro apoia expulsões de alunos mas recomenda “transferência assistida” | Sindicato dos Professores do Ensino Privado afirmou que as escolas devem investir mais no estudante com problemas. | Não aparece o nome de quem escreveu a reportagem. | Caderno Vestibular de Zero Hora. |
05/08/2014 | Intromissão indevida | – | Não aparece o nome de quem escreveu o editorial. | Texto impresso em editorial de Zero Hora. |
06/08/2014 | Regulação necessária | – | José Carlos Sturza de Moraes | Texto impresso na coluna de artigos de leitores de Zero Hora. |
06/08/2014 | Educação sem poder? | – | Marcelo Aiquel | Texto impresso na coluna de artigos de leitores de Zero Hora. |
06/08/2014 | Qual o limite para disciplinar | Conselho Estadual de Educação analisa hoje, a pedido do Ministério Público, parecer que pode proibir medidas como suspensão e expulsão de alunos de instituições públicas e privadas. | Larissa Roso | Reportagem de duas páginas. No cabeçalho consta “Educação | Autonomia das escolas”. |
06/08/2014 | Conselho analisa parecer que pode proibir suspensão e expulsão de alunos no RS | Parecer elaborado a pedido do Ministério Público interfere na autonomia de instituição de ensino públicas e privadas. | Larissa Roso | Notícias |
06/08/2014 | Conselho adia votação de projeto sobre expulsão de alunos no RS | Parecer discutido nesta manhã não tem prazo para ser votado. | Eduardo Rosa | Notícias |
Com esse levantamento é possível perceber que das nove matérias cinco apresentam a palavra expulsão/expulsar no título. Olhando mais atentamente se percebe que correspondem às reportagens do caderno vestibular e/ou notícias do jornal. Em dois subtítulos, do dia 6 de agosto, aparece a informação de que o parecer 578 foi elaborado a pedido do Ministério Público e as mesmas apresentam uma nota simplificada com a função desempenhada pelo CEED.
“Transgressores com a impunidade pretendida”
As primeiras três matérias do dia 4 de agosto denotam e enfatizam que o parecer é uma “ameaça” aos professores e as escolas porque impediria as instituições de ensino públicas e privadas de suspender, afastar ou expulsar alunos a seu bel-prazer. De acordo com a reportagem “tal resolução seria aplicada em todos os casos, independentemente de o estudante ter histórico violento ou como infrator, dentro ou fora da escola. Caso o parecer seja aprovado, a instituição fica responsável por lidar com casos de indisciplina de outras maneiras”.
Esse modo de escrever também aparece nas duas matérias publicadas no dia da reunião, mas de forma mais persuasiva se associa as falas dos representantes das escolas privadas e de seus exemplos: “Toillier relembra um caso rumoroso ocorrido em Porto Alegre em 2007: um aluno do Ensino Médio detonou um artefato explosivo dentro da lixeira de um colégio”. Logo em seguida, outro exemplo de uma das representantes das escolas privadas utilizado pela reportagem de Zero Hora: “Houve um dano coletivo. A turma estava deixando de aprender ou não queria vir à escola com medo desse aluno, recorda Marícia”. E essa primeira página da reportagem de duas páginas termina assim “Mais uma vez, estarão tirando a autoridade do professor e da instituição escolar”.
A segunda página da mesma reportagem destaca as três medidas punitivas que costumam ser aplicadas pelas escolas. No entanto, a disposição do texto na página salienta que as medidas punitivas são aplicadas somente depois de se esgotarem todas as possibilidades para resolução de problemas e conflitos. É importante que se registre que em nenhum momento dessa reportagem se quer foi citada a posição dos favoráveis ao parecer e nem a opinião do Ministério Público que foi o autor da consulta ao CEED.
Também no dia da reunião foram publicados em Zero Hora dois artigos de leitores. O primeiro com o título “Educação sem poder?” é totalmente contra o parecer, o chama de “absurdo”, de “totalmente alheio ao princípio educacional” e de que “pretende tratar o transgressor com parcimônia”, ao invés de submetê-lo a uma “punição exemplar”. Nesse artigo, que foi escrito por um advogado, todos os estudantes foram tratados como transgressores, bandidos em potencial. O autor não se dá conta, ou não quer se dar conta, da importância da discussão, simplesmente desqualifica o assunto desprezando o debate e afirmando que se o parecer for aprovado serão formados “novos transgressores com a impunidade pretendida” e o bacharel em ciências jurídicas vai além, segundo ele: “esta impunidade que faz crescer os desvios de conduta ética e moral de uma sociedade”. Pobres estudantes que tem que carregar mais esse fardo. O advogado, autor do artigo, parece esquecer que a matéria ora abordada é reconhecida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
“Algozes incontroláveis”
Transcreve-se excerto de sentença lavrada pela juíza dra. Camila Luce Madeira [julgadora processo de 1º grau: 033/5.110000605-1]:
“Ao conferir a legislação tratamento especial a crianças e adolescentes, reconhece que são seres que merecem especial tratamento ante a vulnerabilidade pelo desenvolvimento físico e mental incompleto. Justamente por isso, o tratamento diferenciado também no âmbito penal conferido aos adolescentes, com aplicação de medidas socioeducativas e não penas., visando justamente o efeito pedagógico de alteração de comportamentos e não punição por ato exclusivo. […]. O processo de crescimento, amadurecimento e educação se efetiva não somente com acertos, mas também com erros, sendo que, se ocorrem inclusive na fase adulta, é razoável que a sociedade seja mais tolerante com as faltas cometidas por crianças e adolescentes” [grifos do original].
O segundo artigo, intitulado “Regulação necessária”, foi o único das nove matérias que deu abertura para a discussão antes de sentenciar o assunto ao engavetamento. O autor, que é professor e cientista social, compreende que os estudantes precisam de proteção e limites: “crianças e adolescentes não são problemas, mas podem ter problemas e necessitar de apoio. e, por vezes, apoiar é evidenciar que existem regras sociais e qual o sentido dessas”.
A experiência nos mostra que as ações e práticas que dificultam a convivência entre professores e estudantes e estudantes entre si devem ser tratadas de forma educativa na escola e quando a natureza e complexidade dos conflitos necessitarem de mediação extra-escola, esta deve ser de responsabilidade das mantenedoras/escolas, que, juntamente com os Conselhos Escolares ou outros órgãos representativos da comunidade escolar, devem construir alternativas partilhadas para a solução do problema.
A reflexão crítica é um ato determinante no processo de conhecimento e de pesquisa, também por isso deixei para analisar agora o editorial de Zero Hora publicado no dia 5 de agosto. Com o título “Intromissão indevida”, o texto clama para que os professores e as escolas não deixem o Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul sozinho na reação ao parecer em debate. De acordo com o editorial, que não apresenta dados estatísticos, “não são raros os casos marcados pela violência contra a escola, contra os alunos e contra os mestres e funcionários. São atitudes que põem em xeque a autoridade da escola”.
Logo no início da leitura já se percebe que a argumentação utilizada pelo jornal é baseada na estratégia da persuasão e por meio da imposição do medo. A palavra violência/violento, infrator, vândalo e outros adjetivos apareceram nos três dias de campanha de Zero Hora contra o parecer do CEED, mas principalmente no editorial. É como se, de fato, a função do Conselho e das escolas fosse impor o controle sobre os estudantes: “adolescentes sem limites se transformarão em algozes incontroláveis”, afirma o editorial.
O parecer e o assunto foram engavetados
Para o jornal, “o parecer em questão retira dos colégios o direito de fazer prevalecer a disciplina, em favor da maioria, e submete as escolas ao poder dos agressores”. Mas afinal, que lugar é esse a escola? Um campo de batalha? Sabe-se que os conflitos enfrentados pelas escolas são difíceis, de natureza complexa, por isso a importância dos serviços interdisciplinares para a resolução dos problemas. O contexto da garantia do direito à educação exige da escola assumir uma função social muito importante no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente. Mas o editorial só está preocupado em convencer os educadores de que:
“[…] não é de excesso de condescendência com a indisciplina que o ensino precisa, para fazer valer sua missão de educar. Ao contrário, as escolas precisam, com transparência e clareza quanto a leis e regras, fazer valer a preservação de um ambiente civilizado, dentro e fora de sala de aula. Agressores e vândalos já desfrutam de uma certa sensação de impunidade. Ampliá-la será ruim para todos”.
Zero Hora é implacável com que discorda do seu ponto de vista. No trecho acima os editores impõe o seu verdadeiro pensamento em relação à educação: um instrumento útil para suscitar o controle sobre as crianças e os jovens estudantes. É nesse contexto que se coloca a importância do debate em relação ao parecer 578 do CEED. De forma muito superficial o jornal abordou que o presente trata de consultas subscritas por Promotores de Justiça, os quais solicitam esclarecimentos há mais de um ano em relação à matéria. O argumento de quem pensa a favor foi quase que totalmente ignorado, esquecido, desqualificado pelo jornalismo de Zero Hora.
O parecer e o assunto foram mais uma vez engavetados. E o jornal na última reportagem sobre o tema enfatizou que não tem prazo para ser votado. Mesmo assim aproveitou para salientar que “a proposta, que prevê que não cabe à escola definir a transferência compulsória de qualquer discente, é motivo de polêmica entre as entidades de ensino. Se aprovada, a resolução seria aplicada em todos os casos, independentemente de o estudante ter histórico violento ou como infrator”. Novamente se associando às palavras do representante do Sindicato do Ensino Privado publicou: “Essa (retirada de pauta) foi uma vitória, mas sou obrigado a lamentar que esse assunto não tenha sido sepultado hoje de uma vez por todas.”
Zero Hora, mais uma vez, mostrou com propriedade como se faz para em apenas três dias retirar da pauta de discussão um assunto importante para a sociedade gaúcha.
Se um dia haverá mudanças, ficaremos a ver.
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Marlos Mello é jornalista e psicólogo