Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A necessidade de diálogo

“A capacidade de diálogo foi ali na esquina comprar cigarro e não voltou.” Assim o jornalista Gustavo Gindre resumiu o quadro que, há mais de duas semanas, opõe os colegas que apoiam e os que participam de um movimento de contestação à diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.

O conflito transbordou no dia 25 de julho, quando a entidade atendeu a uma solicitação das ONGs Tortura Nunca Mais e Justiça Global e acolheu em sua sede uma coletiva de pais e advogados de ativistas presos desde a semana anterior, acusados de planejarem atentados na final da Copa do Mundo. Na véspera, entretanto, os presos foram beneficiados por habeas corpus. Houve tumulto na saída da prisão e, mais uma vez, manifestantes agrediram repórteres.

A crise talvez tivesse sido evitada, ou adiada, se o encontro tivesse sido cancelado ou transferido para outro local. Porque era uma tragédia anunciada: previsivelmente, a coletiva foi marcada por permanente tensão, com críticas que derivaram para insultos à imprensa e aos jornalistas. A indignação logo se espalhou e fez brotar um movimento que, por meio de manifesto virtual, recolheu em duas semanas quase 900 assinaturas para pedir a destituição da diretoria do Sindicato, acusada de não defender a categoria.

Em tempos de radicalização, a capacidade de diálogo costuma mesmo se esvair. Em tempos de internet, pior ainda, pois tudo é viralizado e se instala um ambiente de permanente histeria, absolutamente refratário à argumentação.

Isto é particularmente grave quando a polêmica envolve jornalistas, obrigados, por dever de ofício, ao rigor na apuração e no relato dos fatos. Este é certamente um dos aspectos mais relevantes e preocupantes que esta crise expôs: como é possível que esses profissionais se deixem levar por paixões a ponto de se tornarem cegos e surdos?

Raízes do conflito

A origem do conflito que explodiu agora está na diferença de atitude que a diretoria do Sindicato, pelo menos inicialmente, adotou diante das agressões que os jornalistas vinham sofrendo sistematicamente na cobertura de greves e protestos: a condenação à truculência policial era enfática, mas quando a violência partia de manifestantes havia sempre a ressalva quanto à linha editorial das grandes empresas de comunicação. Isso, aliado a um discurso genérico “contra a criminalização dos movimentos sociais” – que acabava por rechaçar qualquer crítica ao comportamento de grupos, geralmente de mascarados, que iam às ruas com o objetivo explícito de provocar o caos e efetivamente cometiam crimes –, ajudou a criar um quadro hostil, propício a uma divisão que opunha jornalistas profissionais empregados nessas empresas e militantes ou simpatizantes de movimentos de contestação, aí incluídos os chamados “midialivristas” e comunicadores populares.

De bandeja

É uma divisão falseadora, porém, pois no próprio interior das redações se estabeleceu um conflito entre os que criticavam a cobertura das manifestações e os que concordavam com ela. O mal-estar causado na redação do Globo pela famosa capa de 17/10/2013 é exemplo disso (ver “Ainda há jornalistas em Berlim“).

A morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um morteiro acionado por um manifestante, em fevereiro deste ano, levou à radicalização das posições: quem demonstrasse simpatia pelos movimentos de protesto ou contestasse o tom do noticiário era automaticamente visto como apoiador de assassinos.

Esse clima de beligerância se manteve até que a coletiva do dia 25 de julho ofereceu de bandeja a oportunidade para a explosão da crise.

A “terceira via” das críticas

Mas seria falso, ou simplificador, dizer que há uma clivagem entre defensores e acusadores de manifestantes e “midialivristas”. Um grupo significativo de jornalistas também aponta, com mais ou menos ênfase, erros graves na conduta do Sindicato, mas não aderiu ao abaixo-assinado por não ver motivo para a destituição ou renúncia dos dirigentes, inclusive porque reconhece avanços em ações fundamentais como a das negociações salariais. Muitos desses, aliás, não se manifestam publicamente porque temem as consequências de uma tal exposição, e este não é um aspecto menor em todo esse conflito: como ocorre em qualquer empresa, a liberdade é vigiada.

Mesmo quando consegue se expressar, especialmente na algaravia da internet, a voz desses críticos, entretanto, fica abafada no ambiente de polarização que não admite o meio-termo. Assim, ou os apoiadores da diretoria são defensores de assassinos e inimigos da categoria, ou os signatários do manifesto são golpistas pelegos a soldo do patronato.

Plenária tensa

O que prevaleceu na plenária realizada pelo Sindicato na quinta-feira (7/8), com cerca de 400 jornalistas, para discutir a crise, foi essa polarização, por mais que vários dos presentes tivessem tentado argumentar. Nos momentos mais tensos, por pouco não se chegou à agressão física. A Comissão de Ética, da qual sou presidente, elaborou um parecer sobre o caso e pretendia comunicá-lo na ocasião. A leitura talvez tivesse ajudado a esclarecer alguns fatos e a serenar os ânimos, mas não houve condições de fazê-la. O texto foi publicado posteriormente na página eletrônica da entidade (ver aqui).

Na véspera, a diretoria do Sindicato havia divulgado nota em que reconhecia o erro de não haver cancelado a coletiva que foi o estopim da crise.

Pensar no futuro

Por fim, não foram poucos os comentários, frequentemente em tom irônico, que estranhavam a ausência de mobilização semelhante para lutar por salários dignos e melhores condições de trabalho, contra jornadas extenuantes e o acúmulo de tarefas e, não menos importante, contra distorções no noticiário. De fato, contestar o Sindicato é bem mais fácil do que organizar-se para exigir direitos, inclusive porque isso significa enfrentar os superiores na hierarquia da empresa. Não é preciso dizer que um sindicato fragilizado tem menos condições de obter conquistas nessa área.

Mas o pano de fundo de todo esse conflito talvez esteja nas mudanças pelas quais a profissão de jornalista vem passando: a já antiga precarização dos vínculos trabalhistas associada a novas formas de comunicação que emergem com as possibilidades abertas pela tecnologia digital. É um debate importante e complexo, que diz respeito ao futuro da atividade.

Para enfrentá-lo, porém, será preciso aguardar a capacidade de diálogo retornar daquela esquina por onde se escafedeu a pretexto de ir comprar cigarros.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)