Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

A ética no tempo do espetáculo

É justo, é correto, é bom fazer o bem por razões que não são as do bem? É certo agir corretamente, mas por razões tortas? Essa pergunta não é nova, mas é a que me ocorre quando vejo o desafio do balde de gelo. Resumindo, quando você é desafiado ou dá US$ 100 para uma determinada causa nobre ou vira um balde de água com gelo na cabeça, e aí entrega apenas US$ 10. E depois desafia mais três pessoas. É claro que o charme está em sair nas redes sociais gritando, enquanto cai a água geladíssima na sua cabeça. Não é à toa que famosos têm feito isso. E não é fortuito que Paulo Maluf, que para muitos não representa exatamente o bem, tenha feito uma versão própria do desafio, nadando numa piscina fria em vez de derramar o gelo na cabeça.

Sem dúvida, há algo estranho nessa moda. Por que o divertido estará em pagar menos? Na verdade, o melhor, para os beneficiários, seria receberem os US$ 100, não os US$ 10 que lhes cabem quando alguma celebridade ou sub sai na foto. Mas é o susto mostrado na foto ou no clipe que multiplica o desafio. Em outras palavras, chegam menos US$ 90, mas o valor de uma propaganda com um famoso é inestimável. Perde-se na boca do caixa, de imediato, mas em algumas horas a imagem vira viral e assim se arrecada muito mais. O negócio é o espetáculo. A propaganda é a alma da doação.

Daí minha pergunta: para doar, para fazer o bem, precisamos mesmo desse incentivo? Sem o prazer de ver famosos pagando mico não doaríamos? Ora, o que parece fazer mais sentido eticamente é: a satisfação de fazer o bem é o próprio bem. Deveria ser uma satisfação pura, independente dos resultados que proporcione. Isso é, bem sumariamente, Kant. Uma decisão ética não pode levar em conta os efeitos que ela terá – significando as vantagens ou desvantagens que trará, para todos, mas particularmente para mim. 

Dessa maneira se recortam, para usar uma linguagem mais recente, a esfera da ética e a da prudência. Ajo com prudência quando busco resultados positivos. Procuro a vantagem pessoal. Ou, na melhor das hipóteses, diante de uma injustiça percebo que reagir acarretará problemas sérios para mim, ou mesmo para o injustiçado, e procuro uma via indireta para reduzir danos. Já a ação ética não deve levar em conta o que ela há de produzir. Uma injustiça é uma injustiça, ponto, e deve ser confrontada. Deixemos claro: a maior parte das pessoas, a maior parte das vezes, age (ou pensa agir) com prudência. Mas quem faz a diferença é a pequena minoria de pessoas – e ações – que responde a um clamor ético. Nosso mundo seria um horror não fossem os heróis que, de tempos em tempos, afrontam as potestades, deixam de lado a prudência (“ho perduto la prudenza”, diz uma personagem do Don Giovanni, de Mozart) e partem para a luta. Muitas vezes sucumbem, mas, se a vida humana tem algum valor além do biológico, é graças a eles. O que seria a humanidade, não fossem esses faróis que abrem caminhos antes insuspeitos? Sem eles, teríamos escravidão, mutilação genital, subordinação das mulheres aos homens, dos pobres aos ricos, dos plebeus aos nobres, tudo isso que – pelo menos nos últimos 200 anos – vem sendo questionado e, ao ser vencido, melhora nosso mundo.

Ou seja, eu dar dinheiro porque um espetáculo semicircense me motivou não é ético. É uma diversão. Traz efeitos positivos, sim, porque o dinheiro vai para uma entidade (nem discuto aqui a entidade ou a causa, porque estou tratando do assunto em tese). Mas justamente o fato de me divertir e de serem bons os resultados caracteriza essa ação como não sendo ética. Não quer dizer que seja imoral ou antiética, tampouco. Apenas está fora do âmbito da ética. Possivelmente, traz ganhos para a causa. Será então vantajosa. Mas aumentará o que chamarei, com alguma impropriedade, de “teor ético” na sociedade? Penso que não.

Parque de diversões

Uma das queixas mais frequentes em nossos dias é uma certa depreciação da ética. Muitos dizem que os tempos passados eram mais éticos. Num certo sentido, é verdade, só que o significado de ética, para nossos avós, era diferente do atual. Tomemos por exemplo a ética na política. Fala-se bastante dos impolutos políticos da República Velha. Conta-se daqueles que jamais tomavam um centavo do dinheiro público. Mas era um regime de ampla fraude eleitoral e controle quase absoluto dos pobres pelos ricos. A rigor, eles não roubavam porque não precisavam roubar. Toda a estrutura institucional era construída para privilegiá-los. Ainda hoje, quem tem um certo nível de escolaridade não presta o serviço militar obrigatório das multidões, mas se forma oficial da reserva, no CPOR. Não está sujeito às privações que caracterizam o recruta. Assim se firma uma distinção claríssima entre pobres e ricos. Ou a existência, recentemente revogada, de celas separadas nas cadeias para quem tivesse certo nível cultural (leia-se: social). A cultura é, detestavelmente, pretexto para a segregação social. E também é duvidoso que os políticos antigos não fossem desonestos. Pode ser que isso apenas não fosse noticiado. Afinal, em seu tempo reinavam os grileiros. 

E mesmo que até poucas décadas atrás efetivamente se valorizasse o “fio de bigode”, que realmente as pessoas honrassem mais seus compromissos, que de fato se empenhassem mais em preservar os laços, essas condutas vinham junto com uma visão extremamente hierarquizada da sociedade. Mais que direitos, o que havia era privilégios. Por isso mesmo, era uma ética mais da obediência que da liberdade. Uma das maiores dificuldades que temos, em nossos dias, é a de construir uma ética da liberdade – a única ética, hoje, que merece esse nome. Por um lado, se não formos livres nossas decisões não serão éticas, porque estas presumem a liberdade de escolher. Apenas obedeceremos a ordens, isto é, a mandos, a leis. 

Mas, por outro lado, depois de milênios de ordem social verticalizada, experimentar a liberdade proporciona tal embriaguez, tal alegria, tal prazer que fica difícil aceitar limitações. Isto é, durante milhares de anos vivemos liberdade e obediência como opostos completos. Uns eram livres para tudo, outros para nada, e entre uns e outros havia os que tinham certas liberdades e certas restrições. Hoje estamos aprendendo uma relação intrínseca entre liberdade e restrição (que chamamos de “responsabilidade”) que ainda é nova. Conceitualmente, essa ligação existe já há alguns séculos, mas muita gente ainda não saiu do velho paradigma para entrar no novo. Saber que a liberdade não é simplesmente um fim completo de limitações, mas um sistema em que as limitações decorrem da própria liberdade, é novo – e difícil. 

Para voltar ao balde de gelo: aqui estamos longe da ética. Fazer o bem por razões que não são as do próprio bem é socialmente útil, mas não implica que as pessoas que assim agem, os indivíduos concernidos, sejam eticamente decentes. Na verdade, quase tudo em nossa sociedade funciona dessa maneira, dispensando as pessoas de serem éticas. Uma doutrina antiga, enunciada por exemplo pela fé cristã, rezava que para o Estado ser bom o rei devia ser bom, que para a sociedade funcionar direito os indivíduos deviam ser direitos. A modernidade capitalista varreu essa teoria. O lucro serve de grande motor para a vida social, e ele não é ético – na melhor das hipóteses, é moralmente neutro. Depende de ser canalizado adequadamente pelas instituições para funcionar, seja (mal) como o que impele ao furto, ao assalto, ao latrocínio, seja (bem) como o que conduz a uma economia próspera. A grande novidade dos tempos modernos é esta: como melhorar a sociedade, fazendo-a desfrutar de inúmeros benefícios públicos, sem precisar que os indivíduos sejam virtuosos – ao contrário, apostando justamente nos seus vícios privados. No caso, o voyeurismo de ver famosos sofrendo, por alguns segundos, um choque térmico que os expõe a nossos olhos gulosos. Seria sem dúvida pior se fosse um espetáculo de gladiadores.

Mas ficam assim faltando, em nossa formação, experiências mais éticas. No seu livro A Casa da Rússia, John le Carré diz, a certa altura: “Hoje, para alguém ser ético, às vezes precisa ser herói”. Não é sempre que a exigência é tão elevada. Às vezes, basta ser decente. Mas a ética é o que impõe devolver o dinheiro achado que não é nosso, defender o injustiçado, acudir o acidentado e, por que não, votar de maneira consciente. Em todos esses casos pode haver um sacrifício, um prejuízo, e ele é da substância do heroísmo. No limite, precisaríamos aprender que há casos – felizmente raros, atualmente – em que a própria vida deve ser posta em risco em nome de um ideal maior. 

Deveríamos, penso eu, ler mais histórias de heróis. Mas eles próprios foram degradados. O que as crianças veem como “super-heróis” na televisão são personagens cuja principal qualidade é a força bruta, que sobrevivem ilesos, incólumes, a qualquer prova física. Eles não têm elaboração para além da força corporal. Não têm vida cultural, nem espiritual. Nem são personagens que sacrificam a vida pelo bem comum. Sua vida nunca está realmente em risco. Ora, quando as narrativas de formação ignoram uma experiência humana fundamental, fica difícil formar psiques capazes de algum tipo de renúncia em nome de valores. Daí que, para alguém se separar de seu dinheiro, a saída – expressa no desafio do balde – seja o circo. E se pensamos na sociedade que mais valorizou o circo, a romana, a conclusão não é muito boa. O circo era o lugar da gladiatura, da crueldade, do despedaçamento de homens e mulheres por animais. Era o espaço em que, éticos, só os sacrificados. E não é no lugar deles que os doadores do balde de gelo se colocam – e sim no lugar da plateia que se diverte com o espetáculo. Apartar-se do dinheiro, o que, vamos e venhamos, é muito menos do que apartar-se da vida, se torna apenas o bilhete de ingresso no grande parque de diversões que se tem tornado nossa vida social, virtualizada, a distância. Algo está faltando aí.

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Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP, autor de A Universidade e a Vida Atual (Companhia das Letras)