A campanha eleitoral estreou na televisão com dois recursos narrativos dominantes, a câmera lenta e a metalinguagem. Tanto o programa de Dilma Rousseff quanto o de Aécio Neves estamparam inúmeras cenas com os candidatos em slow motion, cercados por admiradores e aduladores. Com sorrisos beatíficos e gestos ternos, eles afagam crianças, acenam, retribuem beijos e abraços.
Eles estão no meio da massa ignara mas, ao som de musiquinha melosa, dela se distinguem pela aura diáfana que lhes emoldura o semblante sereno. Concedem a graça de sair de seus palácios para que a ralé os toque e celebre. O tempo é retardado de modo que a consagração seja limpa e editada lisamente. A câmera lenta higieniza a imundície do real, atenua a aspereza da vida em sociedade e as cruezas da exploração.
Os meios tecnológicos empregados na propaganda eleitoral são portentosos, caríssimos. Empregam-se câmeras de última geração, uma iluminação que enfatiza a meiga luz da aurora, a edição milimétrica de quem corta cutículas, a gravação em película ultrassensível e de altíssima definição. A estética que eles constroem, contudo, tem raiz na pintura dos pré-renascentistas de Siena: os candidatos são santos que descem das alturas e passeiam com calma sobranceira junto ao sofrido povo de Deus. Ao povaréu, formado por súditos e não sujeitos, cabe somente sufragar os grandes, escolher entre Dilma Coração Valente e Aécio Neto de Tancredo. (Marina Herdeira de Eduardo só dará o ar da graça depois das devidas negociatas partidárias).
A retórica do horário eleitoral é a do kitsch. A palavra alemã designa o sentimentalismo da arte industrial, a gratificação emocional sem o esforço intelectual necessário ao entendimento. O kitsch anula a razão para que o melodrama sentimentaloide triunfe. É reino do cafona, do brega, da mentira política que se apresenta como arte para as massas.
Imagem maquiada
Dito de outro modo: um colega, editor de TV, ao se deparar com informação crua, ou com problemas brutais, pedia “me vê dez segundos de slow”. Ou solicitava “dez segundos de sentimento”. O que ele queria eram imagens em câmera lenta, sentimento estandardizado que pudesse sem assimilado sem reflexão. O colega estava ciente da gramática da vida administrada, daquilo que a imagem informatizada tem de fraude e manipulação.
O segundo recurso de destaque no horário eleitoral foi a metalinguagem, uma elaboração teórica do linguista Roman Jakobson no século passado. Grosso modo, a metalinguagem é a função da linguagem que se refere a si a mesma, à própria linguagem. Jakobson deu como exemplo da função, alçada à condição de poesia, o slogan da campanha à Casa Branca do republicano Dwight Eisenhower, cujo apelido era Ike. O slogan era “I like Ike”, que se transcreve foneticamente para ai laik aik. Com isso, o significante laik identificava o votante (I) ao candidato (Ike). E também os identificava num significado implícito: I (am) like Ike; Eu (sou como) Ike.
Aécio Neves foi quem mais recorreu à metalinguagem no programa de estreia. O seu discurso foi montado de maneira a parecer que estivesse sendo acompanhado pelo rádio, pela televisão e em celulares por sertanejos, gaúchos, pedreiros e jovens da periferia. Foi como se brasileiros de todos os rincões admirassem o candidato no momento mesmo em que o viam na propaganda eleitoral. O efeito identificatório da metalinguagem foi potencializado pela galeria de brasileiros, escolhida a dedo, que parecia se deleitar com o mel tucano – da galera estavam ausentes banqueiros, empreiteiros, os nababos todos que fornecem o capital necessário à concretização da colossal operação metalinguística.
Dilma Rousseff também usou metalinguagem, mas a restringiu a um único signo, que em certas paragens faz figura de suprassumo da contemporaneidade: o selfie. Nunca na história deste país se tiraram tantos selfies quanto nos onze minutos de propaganda do PT. A câmera lenta se congelou na foto do celular. A identificação foi explícita: olha eu aqui com a candidata; I like Dilma; sou igual a ela. Para enfatizar a identificação, a presidente se despiu dos atributos do poder e fez um prosaico macarrãozinho numa cozinha parecida com a de Ana Maria Braga. Médici fritaria um ovo no vídeo?
Não: o general era um ditador, preferia a tortura dos dissidentes às demagogias da democracia. Mas boa parte do programa do PT poderia ter sido feito por Jean Manzon e Amaral Neto, que inventaram as imagens do Brasil Grande. Panorâmicas de arrebóis com torres de petróleo, a Amazônia imponente contraposta a barragens dignas de Ramsés II, a petizada comendo merenda em escolas sem um cisco no chão. O povo pacífico e ordeiro continua a marchar rumo a um radioso porvir.
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Mario Sergio Conti é colunista do Globo