Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A felicidade dos imbecis

Ao lado dos amantes, dos ambiciosos e dos observadores, Taine classificava os imbecis como um tipo básico da vida social. E ainda: para ele, estes últimos eram os mais felizes. Não é uma opinião desprezível, considerando-se o peso que teve o historiador e crítico Hyppolite Adolphe Taine (1828-1893) na vida intelectual europeia da segunda metade do século 19, apesar de suas teses (hoje, desmoralizadas) quanto ao determinismo do clima, do meio natural e do momento sobre o fenômeno humano. Ele morou algum tempo no Rio de Janeiro e teve uma influência considerável sobre o pensamento racista brasileiro em ascensão.

No que diz respeito à diversidade humana, o próprio Taine tinha o seu lado imbecil, mas não era evidentemente um idiota, já que se pode estabelecer alguma diferença entre idiotia e imbecilidade, reservando-se à última o beneplácito etimológico (imbecillis, em latim) do significado de “ingênuo” além dos demais, onde se inclui também “louco”. Tanto assim que se pode levar em consideração a sua opinião sobre a felicidade dos imbecis.

Um exemplo contemporâneo pode ser buscado na internet com suas redes “sociais”, onde há de tudo, mas de tudo mesmo, sobre a radical estranheza do animal humano – do gratificante ao horripilante. Este último adjetivo contempla principalmente o idiota, que a psiquiatria inseria na “tríade oligofrênica” – bem antes da prudência “politicamente correta” – como aquele indivíduo com idade mental inferior a dois anos. O adjetivo deixa a porta aberta para a inclusão do imbecil, que escapa da idiotia por escassa diferença do padrão mental.

Afora a sua evidente utilidade como correio e como arquivo universal, o que a internet e as suas redes vêm revelando é uma concepção de espaço público como “espelho” tecnologicamente ampliado da vida social. Foi-se embora o velho requisito liberal de natureza ético-política, que inscrevia no “reflexo” da imprensa o horizonte autoeducativo da sociedade, para além da mera repetição técnica do existente.

Daí a crítica filosófica à metáfora do espelho: “Quando alguém se olha no espelho não vê o outro de si mesmo, nem mesmo o outro do outro, mas apenas a si mesmo” (Emmanuel Carneiro Leão). A mera reduplicação de si mesmo é uma circularidade vazia, porque prescinde das mediações necessárias a todo ato de conhecer. É a visão que se tem do puro espetáculo – a lógica do funcionamento midiático até agora – capaz de emocionar sem produzir sentimento ou lucidez sensível.

Desprezo à diversidade

Cada vez mais, existir confunde-se com existir no espelho armado por mercado e tecnologia eletrônica. Embora as cabeças possam estar antenadas com a geografia virtual construída pelas tecnologias, os corpos concretos da maioria desigual ainda se espalham em paisagens urbanas degradadas e carentes de espaço público mediador, com rendimentos cada vez mais reduzidos em função das regressões das condições de trabalho. O corpo humano com suas circunstâncias biológicas e históricas (classe social, etnia etc.) não é sincrônico ao desenvolvimento da máquina onde o sujeito contemporâneo tende a habitar virtualmente.

A tecnologia – a última das utopias do capital – deixa de desenvolver-se como conjunto das técnicas de domínio e uso das inovações para se oferecer às maiorias politicamente apáticas como fonte inesgotável dos gadgets de consumo. Evanescem os valores do socius comum, que tradicionalmente fomentavam os sentimentos de solidariedade e compaixão.

Numa paisagem que se reivindique como radicalmente humana, torna-se esterilizante o pressuposto de uma forma social única sistemicamente regulada por mercado e tecnologia. Uma sociabilidade limitada a esse escopo exclusivo (aquela que norteia as pesquisas sobre consumo cultural, recepção de mídia, opiniões, gosto e atitudes do público, as variadas práticas e efeitos da rede eletrônica etc.) presta-se à reprodução burocrática ou circular da existência, mas deixa de lado o problema central da coesão social, que se situa na esfera consciente e inconsciente do comum.

É viável a hipótese de que essa paisagem seja o pano de fundo para a emersão da imbecilidade larvar na rede eletrônica. Vem calando fundo em setores ainda lúcidos a disseminação de ódio e preconceito acobertados pelo anonimato das manifestações nas redes sociais.

Foram chocantes, por exemplo, as agressões dirigidas à jornalista Miriam Leitão após ter revelado de modo comedido, mas pungente, detalhes de sua tortura durante a ditadura militar. O que deveria ter provocado reações de espanto e indignação deu lugar à sordidez de insultos desapiedados.

Chocante foi igualmente o episódio da jovem negra que publicou no Facebook uma foto ao lado do namorado branco. A enxurrada de ofensas racistas levou o casal a procurar a Delegacia de Crimes Cibernéticos de Belo Horizonte, para tentar pôr cobro à violência moral.

Fora da rede, mas sem dúvida no interior desse mesmo espírito de desprezo para com a diversidade humana, situam-se as agressões racistas a jogadores de futebol, como acaba de acontecer em Porto Alegre.

Tempo integral

Os exemplos se multiplicam, seria inútil enumerá-los aqui. Interessa, sim, confrontar o chamado “discurso de rede” com a pesquisa recente do MTD/CNT, segundo a qual 73,8% dos usuários entrevistados não acreditam na veracidade do que circula nas redes sociais. Nessa esfera de mídia – pois é realmente de mídia nova que se trata – deixa de existir a credibilidade que sustenta o pacto histórico da imprensa tradicional com seus leitores. Mas faz existir uma pergunta inquietante: se tantos não acreditam, por que tantos aderem ou mesmo se viciam no conteúdo das redes?

Não se pode realmente enunciar uma única resposta para o fenômeno, mas é possível começar a pensar a partir da ausência de mediações institucionalizadas na circulação quase incontrolável de notícias, informações gerais, autorretratos, factoides e conversas. Mediar é o que sempre buscou fazer o jornalismo, com acertos e desacertos. Sem isso, cada um convertido em “mídia pessoal”, mas sem compromisso com uma historiografia veraz, converte-se também ao culto narcísico de si mesmo, fonte conhecida de ódio e de agressão ao Outro. Do narcisismo individual, de classe social e de etnia emerge aos poucos um conservadorismo regressivo sem pudor e sem piedade que destila de um “esqueleto” espectral (a rede, movida apenas por valores de acessibilidade e conexão) afetos sem sentimentos, em que não se consegue enxergar “corpo” social.

É o que nos parece estar acontecendo. Esse sujeito complacente com a própria imagem no espelho tecnológico, mas provavelmente de escasso amor próprio, é o paradigma do imbecil de que falava Taine. E agora com uma variável ultramoderna, que é a imersão na rede. Conectado por 24 horas, babando o seu ressentimento sem maiores riscos, o imbecil é feliz em tempo integral.

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro