É de Chico Buarque e Ruy Guerra a imagem: “Se trago as mãos distantes do meu peito/ É que há distância entre intenção e gesto”. Os versos de “Fado Tropical” remontam a um tempo em que falar de flores vencendo canhões era desafiar a ordem ditatorial instituída. A franja de tempo se nos coloca outra vez diante de um enigma que se interpõe entre palavra, intenção e gesto presentes nos discursos, jornalísticos e políticos, nas eleições 2014. Observo alguns fragmentos presentes nas edições do domingo (31/8) dos dois maiores jornais diários (em papel) do país: O Estado de S. Paulo (OESP) e a Folha de S. Paulo (FSP). E esses fragmentos podem, ao invés de informar para otimizar a capacidade de tomada de decisões dos cidadãos, induzir interpretações distantes dos fatos, podendo levar a erros ou incoerências involuntárias, desses mesmos cidadãos quem teoricamente se queria ajudar.
Essa tentativa de impor apenas uma interpretação, se levada ao extremo, produz um tipo de discurso marcadamente antijornalístico, tal como aparece em uma pequena matéria da Folha. No título, o logro: “Horário eleitoral não desperta o interesse de 46%” (FSP, 31/08/14, p. A6 – Poder). O lide passa a ideia de que apenas uma “pequena parcela” da população tem interesse no palanque eleitoral, comprovando a máxima de que “ninguém mais suporta a política”. Quando aparecem as valências adotadas pela pesquisa do Datafolha, a interpretação possível passa a ser outra. Se somarmos os que manifestam algum tipo de interesse (pouco/33% + muito/20%) chega-se ao número de 53% (com 1% indiferentes). E se o título fosse: “Horário eleitoral desperta o interesse de 53% da população”, qual seria a sua interpretação, caro leitor?
Ainda no viés da distância entre palavras, intenções e gestos e a coluna do jornalista Janio de Freitas, cujo sugestivo título “Um em dois” dialoga de frente com essa dualidade intenção e gesto, ao chamar a atenção para as palavras dos programas de dois dos principais candidatos à Presidência da República. Em síntese, Freitas escreve que ou há duas Marinas ou há dois Aécios:
O catatau dado como programa de governo de Marina Silva e do PSB, mas que contraria tudo o que PSB defendeu até hoje, leva a uma originalidade mais do que eleitoral: na disputa pela Presidência, ou há duas Marinas Silvas ou há dois Aécios Neves. As propostas definidoras dos respectivos governos não têm diferença, dando aos dois uma só identidade” (FSP, 31/08/14, p. A15 – íntegra aqui).
A retórica, base filosófica elementar do discurso político, permite essa fusão e confusão entre palavra e imagem. Uma certa ambiguidade faz parte do jogo, mas há que se ter limites claros para não se iludir, tampouco lograr os cidadãos. Freitas retoma o raciocínio, a partir da interpretação dos textos dos dois candidatos à Presidência da República:
De volta aos projetos de governo, Marina e Aécio desejam uma posição brasileira que, por si só, expressa toda uma política exterior. Pretendem o esvaziamento do empenho na consolidação do Mercosul, passando à prática de acordos bilaterais. Como os Estados Unidos há anos pressionam para que seja a política geral da América do Sul e, em especial, a do Brasil” (fonte cit.).
É previsível que ambos negarão, no debate público, esse enfoque claramente posto e aqui observado pelo colunista.
“Desordem do desenvolvimento”
A relação mais direta entre saber (conhecimento) e linguagem foi discutida por um gigante da filosofia contemporânea, Michel Foucault (em “As palavras e as coisas”). Recorro ao texto direto de Foucault, antes de prosseguir observando os fragmentos dos discursos:
“Saber consiste, pois, em referir a linguagem à linguagem. Em restituir a grande planície uniforme das palavras e das coisas. Em fazer tudo falar. Isto é, em fazer nascer, por sobre todas as marcas, o discurso segundo do comentário. O que é próprio do saber não é nem ver nem demonstrar, mas interpretar.”
Em outras palavras, o filósofo francês vai dizer ainda mais precisamente:
“Mas, se a linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas que ela nomeia, não está por isso separada do mundo; continua, sob uma outra forma, a ser o lugar das revelações e a fazer parte do espaço onde a verdade, ao mesmo tempo, se manifesta e se enuncia” (fonte cit.).
Mais que significado e significante, há um liame que se coloca nesse sistema de signos que nos enlaça humanamente: as palavras estão sempre grávidas de seus contrários e contextos.
Seguindo nessa linha de interpretar palavras, intenções e gestos, o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade de Campinas e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo, assina um texto de opinião intitulado “Desvendando Marina” (ver aqui). O pesquisador arrisca-se a decifrar essa esfinge:
“Minha convicção é a de que o comentarista não tem o direito de especular sobre a religião das pessoas que analisa. Todavia, há exceções quando se suspeita que essas crenças possam ter influência no bem-estar do povo. É o caso de fundamentalismos, inclusive o criacionismo. Marina Silva, no passado, admitiu essa sua convicção. Ultimamente, evita discussões sobre o problema. Pois bem, não me sinto confortável em ter como presidente uma pessoa que acredita concretamente que o Universo foi criado em sete dias há apenas 4.000 anos, aproximadamente” (fonte cit.).
Outro fato a destacar, nesse mesmo sentido, foi a mudança radical do programa de Marina Silva e Beto Albuquerque, no tocante aos direitos dos casais homoafetivos e à luta contra a homofobia. Menos de 24h depois de ser lançado um robusto documento de 241 páginas, a candidata recua sob forte pressão dos setores evangélicos mais conservadores.
A reportagem de Roldão Arruda (OESP, 31/08/14, p. A4) capta essa distância entre intenção e gesto: “Marina agora exclui casamento gay e criminalização da homofobia de plano”. Os três pontos são destacados num quadro: casamento gay, criminalização da homofobia e material didático contra a homofobia (ver aqui). No primeiro caso, Arruda destaca numa comparação vis-à-vis: “O texto antes divulgado por Marina apoia claramente o casamento civil de homossexuais e promete esforço pela ‘aprovação dos projetos de lei e da emenda constitucional em tramitação que garantem o direito ao casamento igualitário na Constituição e no Código Civil’”. Na nova versão, a candidata promete apenas “garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do mesmo sexo”, o que, destaca o repórter, “já é garantido pelo Supremo Tribunal Federal” (fonte cit.).
Na tensão indissociável entre palavra, intenção e gesto, há um claro limite para a retórica, que pode se deteriorar em menos de 24 horas e se transformar em pura demagogia. Política é a arte de fazer escolhas. Esse é o mote do artigo assinado pelo professor Wagner Iglecias (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo). No texto “Do sonho à práxis” (OESP, caderno “Aliás”, 31/08/14, p. E9), Iglecias faz arguta interpretação do cenário político:
“Afinal, desde 1989 esta é a eleição mais estratégica que o Brasil vivenciará. O conflito distributivo interno chegou a um ponto decisivo, pautado pela disputa entre mais recursos para programas sociais e investimentos ou para a rolagem da dívida pública. Assim como chegou a um momento definidor a inserção do País no cenário externo, se caracterizada por maior autonomia e busca da construção de um mundo multipolar ou pela maior proximidade com potências tradicionais como EUA e União Europeia” (fonte: http://migre.me/lnUoO).
Nessa perspectiva do exercício permanente da arte de fazer escolhas, o professor Wagner Iglecias finaliza seu texto com uma indagação crucial: “Daqui até as urnas há chão ainda. Mas, se eleita, Marina terá escolhas históricas a fazer. Escolhas que definirão o futuro do País pelas próximas décadas e afetarão as próximas gerações. De que lado Marina estará?” (fonte cit.).
Cerqueira Leite, por outro lado, conclui seu texto corajoso sobre essa primazia da interpretação sobre palavras e coisas reafirmando: “O fundamentalismo de Marina Silva não decorre da ignorância, mas de um defeito de percepção. Os especialistas chamam essa condição de desordem do desenvolvimento neural. Essa é a razão por que espero que Marina não ganhe esta eleição” (fonte cit.). A ver os desdobramentos entre palavras, intenções e gestos que marcarão a disputa pela Presidência da República.
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Samuel Lima é jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC)