Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Duas palavrinhas sobre a vírgula

Faz um bocado de tempo que não trocamos duas palavras sobre a vírgula e outros sinais de pontuação.

Não faltam “teses” bizarras sobre o tema. Uma delas diz que “a vírgula serve para respirar”. Se assim fosse, César Cielo escreveria textos enormes sem usar a vírgula.

A coisa não é bem assim. Na linguagem escrita culta formal, o emprego da vírgula é orientado essencialmente por critérios sintáticos e estilísticos. Calma, caro leitor; já traduzo (ou tento traduzir) isso.

Vamos começar pela sintaxe, por uma regra básica: não há vírgula entre termos que têm relação sintática direta, como sujeito e verbo, verbo ou nome e complemento etc.

Vejamos um exemplo concreto: “O presidente da montadora alemã no Brasil disse que negocia com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC a redução da tabela de salários na fábrica de São Bernardo do Campo”. Muita gente simplesmente não resiste à tentação de lascar uma vírgula nesse trecho. O motivo dessa necessidade quase infrene de lascar uma inútil vírgula? “O trecho é muito longo”, dirão/diriam alguns.

Aos fatos: no trecho citado, temos dois verbos (“disse” e “negocia”). O sujeito do primeiro verbo é “o presidente da montadora alemã no Brasil”, que NÃO pode nem deve ser separado por vírgula do verbo imediatamente posterior (“disse”). Poderíamos até espichar o sujeito, o que não significaria nada em termos de pontuação: “O novo presidente da mais importante montadora alemã no Brasil disse…”. A comichão talvez aumentasse, mas seria necessário resistir à tentação de empregar a vírgula antes de “disse”, já que ela separaria o sujeito do verbo, do predicado.

E pode haver vírgula depois de “disse”? O que vem depois de “disse”? Vem o que o presidente da montadora disse, isto é, vem o complemento direto da forma verbal “disse”. Pergunto: você poria vírgula depois de “disse” em “Fulano disse isso”? Decerto não. Nesse caso, a palavra “isso” representa o que Fulano disse, certo? Volte ao trecho citado e veja o que o líder da montadora disse. Seja lá o que for, não há vírgula entre “disse” e o trecho que representa o que ele disse: “… disse que negocia com o Sindicato…”.

Mar imenso

Em vestibulares mais sofisticados, não é improvável a seguinte pergunta: “Indique o objeto direto de ‘disse’ no trecho citado”. Ora, o objeto direto de “disse” é justamente o que o indivíduo disse (se ele disse, disse alguma coisa, certo?). Então o objeto (complemento verbal) direto de “disse”, ou seja, a resposta a essa hipotética questão é o que vai de “que negocia” até o fim.

E dentro do trecho que vai de “que negocia” até o fim? Vamos lá: o verbo “negociar” foi empregado com dois complementos, já que se diz com quem o presidente negocia e o que ele negocia. A forma verbal “negocia” tem dois “filhos”: “com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC” e “a redução da tabela de salários na fábrica de São Bernardo do Campo”. Entre o “pai” (ou “mãe”) e o “primeiro filho”, ou seja, entre “negocia” e “com o Sindicato…”, nada de vírgula. Ou você teria coragem de separar pai (ou mãe) de filho?

E entre os dois “irmãos”, ou seja, entre os dois complementos da forma verbal “negocia”? É possível lascar uma vírgula? Mudo a pergunta: você separaria irmão de irmão?

Moral da história: por mais forte que seja a comichão, resista à tentação de pôr uma vírgula entre termos que têm relação sintática direta, ainda que algum deles seja longo.

É claro que o que está neste texto é apenas uma gotinha do imenso mar que abriga a pontuação. Prometo voltar logo ao tema. É isso.

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Pasquale Cipro Neto é colunista da Folha de S.Paulo