Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

De sujeitos e objetos

É interessante observar como os cidadãos pobres aparecem no discurso da candidata Dilma Rousseff. Raramente estão ali como sujeitos. No mais das vezes, entram como objeto direto. Se você quer entender de que modo essa candidatura enxerga o povo brasileiro, preste atenção a esse pequenino detalhe linguístico.

Na visão dos que escrevem as falas da atual presidente da República na sua campanha para ganhar mais um mandato, os brasileiros de baixa renda não são os sujeitos gramaticais de suas próprias narrativas, mas apenas polos passivos que sofrem os efeitos de ações praticadas por outros. Poderíamos dizer que na oratória governista os eleitores mais carentes não aparecem como os protagonistas de sua própria existência, mas apenas como beneficiários da caridade alheia, isto é, da caridade estatal.

Passemos a um exemplo. A toda hora a candidata em pessoa (como se viu agora, nos debates) repete um de seus bordões prediletos. Ela diz: “tiramos” milhões de pessoas “da miséria” e “levamos” milhões à “classe média”. É como se as tais pessoas estivessem lá, paradas, expostas às agruras da carência mais cruel, e então entrasse em cena a providência do Palácio do Planalto para pegá-las pela mão e transportá-las, milagrosamente, umas para fora da miséria e outras para aquela área da planilha tecnocrática que os burocratas chamam de classe média.

Nessa retórica, os desassistidos não são autores de sua biografia. São meramente peças móveis no tabuleiro da política. Podem ser postos daqui para lá não segundo a sua própria vontade – que nem é mencionada na propaganda do PT –, mas graças à caridade oficial, que se diz “de esquerda”. Na sintaxe presidencial, o sujeito da ação que teria o condão de mudar a vida do povo não é o próprio povo. O povo? Ora, o povo. O sujeito é o governo.

Figurantes passivos

Se o leitor ficar atento, verá que a distinção entre sujeito e objeto direto revela muito, mas muito mesmo, sobre o que vai pela cabeça do pessoal que escreve essas coisas. Em matéria de ascensão social, o proselitismo pró-Dilma seria mais verdadeiro se lembrasse, com a mesma insistência, outra transmigração de classe que esse governo deu de propiciar. A candidata poderia proclamar o seguinte: “Nós tiramos centenas de pessoas da cúpula ideológica da ‘classe trabalhadora’ e as instalamos diretamente no cume pecuniário da burguesia, sem nenhuma escala intermediária”. Seria mais autêntico. Aí, porém, os felizardos novos bilionários orgânicos protestariam, zelosos de seu “protagonismo”, como gostam de dizer, fazendo uma “colocação”: “Espere aí, companheira. Nesse caso, o mérito é nosso, concretamente falando”.

O problema é que o discurso que inclui o povo pobre como objeto direto, e não como sujeito, não é inócuo. Além de denunciar uma mentalidade autoritária, causa estragos no entorno. Gera consequências reais na imagem que esse mesmo povo faz de si. Ao aceitar ser tratado como objeto, o público desse apelo eleitoral também aceita ver-se como dependente. Para ter o que comer, para ter onde estudar e para não morrer por falta de atendimento médico, o interlocutor dessa propaganda é instado a imaginar que não sobreviveria sem a ação misericordiosa daquele que discursa. Ele se vê, então, como um produto, uma fabricação do governo e da presidente-candidata.

Forma-se aí uma interlocução assimétrica, em que o poder está todo depositado naquele que fala. Quanto àquele que escuta, resta a miserável condição de pedinte subalterno, resta o papel de agradecer pela boa ação de que foi objeto. Quer dizer: agradecer é pouco. O destinatário da publicidade eleitoreira é interpelado a retribuir com seu voto a passagem gratuita que o transportou generosamente da classe social de baixo para a classe social de cima.

Na sintaxe da propaganda do governo, as biografias dos mais pobres são sempre orações subordinadas. Como bons subalternos satisfeitos, eles que aprendam a dizer “muito obrigado” e a fazer sim com a cabeça. Eles que idolatrem seus salvadores. Eles que se ponham em seu lugar. Eles que saibam que, em vez de mobilizados, organizados e autônomos, em vez de senhores de suas próprias iniciativas e de donos de seu destino, exercem o papel de figurantes passivos e inexpressivos – em todos os sentidos – dentro da narrativa oficial.

Sem memória

Outro sintoma da mesma mentalidade governista está na falta de cerimônia com que a propaganda do Planalto lança mão do terrorismo como chantagem na caça ao voto. Como quem é dependente também há de ser medroso e como aquele a quem só resta agradecer vive apavorado com a hipótese de perder a proteção que imagina receber dos poderosos, a campanha eleitoral da recandidatura da presidente não se inibe quando precisa provocar o temor dos que não têm quase nada, ou mesmo nada, a perder.

No quesito terrorismo, primeiro, a marquetagem dílmica fez de tudo para levar a audiência a acreditar que a sigla PSDB nada mais é que um adjunto adverbial de miséria e de desemprego. Com efeitos especiais caríssimos, produziu filmes sentimentaloides mostrando os brasileiros passando fome no futuro, tudo porque cometeram a insensatez pecaminosa de não sufragar a recandidata. Agora a marquetagem começa a insinuar que a candidata Marina Silva, que disparou nas pesquisas, seria a reencarnação de Jânio Quadros e de Fernando Collor. Seria cômico, se não fosse infame. Jânio já morreu. Vamos deixá-lo no passado. Mas Collor, por favor, Collor está muito vivo e, integrante assíduo que é da base aliada, tem servido com bravura na defesa incondicional do governo Dilma.

De sua parte, Marina foi ministra de Lula (2003-2008) e já militava no PT quando, em 1989, Lula perdeu a eleição para Collor. Historicamente, é muito mais petista do que Dilma Rousseff. A propaganda do PT, claro, esconde o passado. Não sendo sujeito, o eleitor também não precisa de memória.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP