A entrevista do líder da Assembleia de Deus em Cristo Silas Malafaia ao jornal O Globo em 1º de setembro é o retrato do pastor e do lugar que ele ocupa no quadro do neoconservadorismo predominante no cenário evangélico (veja o conteúdo da entrevista). O termo conservadorismo é usado aqui no sentido da ciência política referente a posições alinhadas com a manutenção (contrárias a mudanças) de determinada ordem sociopolítica, econômica, institucional, ou de crenças, usos e costumes de uma sociedade. O conservadorismo dos evangélicos no Brasil não é dado novo, diante da formação deste segmento cristão no século 19 baseada no fundamentalismo bíblico, no puritanismo e no sectarismo. Muito se transformou nestas bases ao longo do século 20; emergiram grupos abertos à atuação social, ao ecumenismo, mas o conservadorismo sempre foi predominante entre os evangélicos. Foi o que provocou a omissão das igrejas frente à implantação da ditadura militar no Brasil (1964-1985) e também tornou possível o alinhamento de boa parte das lideranças evangélicas com o governo de exceção.
Nos anos 2000 temos uma nova face do conservadorismo religioso, um neoconservadorismo, que emerge como reação a transformações socioculturais que o Brasil tem experimentado, em especial a partir dos anos 2002, com a abertura e a potencialização de políticas do governo federal voltadas para direitos humanos e gênero.
O “neo” se deve à visibilidade mais intensa de lideranças evangélicas que se apresentam como pertencentes aos novos tempos, em que a religião tem como aliados o mercado e as tecnologias, mas que se revelam defensoras de posturas de um conservadorismo explícito. Lideranças midiáticas se fortalecem na esfera pública, como o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, o pastor do Ministério Tempo do Avivamento (Assembleia de Deus) deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), o senador sem-igreja Magno Malta, cantores gospel e novas celebridades religiosas. Além da visibilidade midiática que as transforma em autoridades/referências religiosas que ultrapassam até mesmo os arraiais evangélicos, essas pessoas têm em comum, discursos de rigidez moral e de conquista de poder na esfera pública.
O conservadorismo evangélico explícito dos anos 2010 parece estar dentro de um contexto de fortalecimento de posturas conservadoras na esfera pública brasileira. Um desdobramento dos dados de pesquisa eleitoral realizada pelo Datafolha em outubro de 2013 revelou que a maior parte dos brasileiros se identifica com valores de direita. A separação foi feita com base nas respostas dos entrevistados a perguntas sobre questões sociais, culturais e políticas, como a pena de morte e o papel dos sindicatos na sociedade. Dos entrevistados, 38% foram classificados como de centro-direita, 26% de centro-esquerda, 22% de centro, 11% de direita e 4% de esquerda.
Retórica enganosa
Em acordo com o que o Datafolha indica, vários analistas sociais têm sugerido que uma tendência política tradicionalista em questões morais e sociais, defensora da liberdade individual e do livre mercado, está em ascensão no Brasil. O sucesso de políticos como os deputados Marco Feliciano e o não-religioso Jair Bolsonaro, de partidos como o Social Cristão (PSC), que lançou candidato o Pastor Everaldo (Assembleia de Deus) à presidência da República, e de celebridades religiosas como o pastor Silas Malafaia é elemento emblemático. Com discursos dentro do ideário da moral cristã (contra o aborto e o controle da natalidade e pelo tratamento psicológico a homossexuais) e de princípios caros ao liberalismo na política e na economia (Estado mínimo e elogios ao livre mercado), essas personagens têm captado apoios para além do círculo religioso com o mote “é preciso salvar a família”. Na visão destas lideranças, a família está sob a ameaça dos movimentos civis por direitos sexuais e enfrentamento da violência sexual, reforçados pelas ações do governo federal, desde que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu em 2002 com abertura de mais espaços para legislação que responda a essas demandas. Alguns apelos ainda tomam como ingrediente uma possível ameaça de o comunismo tomar conta do Brasil. Segundo esses discursos, este seria o verdadeiro propósito do governo do PT em nível nacional.
Todo este processo tem a mediação das mídias, que historicamente têm um alinhamento com valores e políticas conservadoras, dado o perfil dos seus proprietários, e que, pelo menos na última década, em especial na cobertura noticiosa, têm dado amplo espaço para analistas e comentaristas defenderem abertamente essas perspectivas, como é o exemplo de Arnaldo Jabor, Alexandre Garcia e Merval Pereira, nas Organizações Globo; Reinaldo Azevedo, na revista Veja; José Luiz Datena e Boris Casoy, no Grupo Bandeirantes; Marcelo Rezende, na Rede Record; Luiz Pondé, na TV Cultura; e mais recentemente, Rachel Sheherazade, no SBT. Soma-se a este quadro elemento um significativo: a identificação de não poucos casos de racismo em estádios de futebol e em inúmeras postagens em redes digitais. São movimentos da dinâmica sociopolítica e religiosa que vão marcar novas tendências e merecem ser acompanhados nos tempos por vir.
A entrevista do pastor Silas Malafaia em O Globo ainda tem um elemento que vale a pena destacar. O líder religioso ganha espaço também jogando forte com um discurso enganoso e as mídias caem na armadilha. Segundo o pastor Malafaia, nos registros do IBGE 25-27% de evangélicos mais 20% de católicos praticantes apoiam as posições conservadoras defendidas por ele, e por tabela, pela candidata do PSB à Presidência da República Marina Silva, a quem ele registra apoio num eventual segundo turno. O engano é tratar os evangélicos como um grupo monolítico: não são conservadores na totalidade, bem como não votam com Marina Silva na totalidade. Retórica enganosa que as mídias repetem sem correção.
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Magali do Nascimento Cunha é jornalista e professora