Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um erro crasso de ortografia

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi firmado pelos países de língua oficial portuguesa em 1990 (Timor-Leste aderiu em 2004, após sua independência). Ao unificar as bases da ortografia desses países, o acordo visava fortalecer o português nos organismos internacionais, facilitar o intercâmbio cultural e a circulação de obras científicas e literárias, eliminando os custos de sua reedição.

No Brasil, cerca de 0,5% das palavras foram afetadas, com a eliminação do trema, de alguns acentos e com alterações nas regras de hifenação. Em 2009, o acordo entrou em vigor no Brasil e em Portugal, com um período de transição de três e seis anos, respectivamente.

Em 2012, no entanto, a presidente Dilma prorrogou a transição para 1º de janeiro de 2016. Faltou a ela a devida avaliação. A sociedade já havia acatado e assimilado o acordo. Os livros didáticos, as editoras, a imprensa, todos já haviam adotado o novo sistema ortográfico. A decisão do governo não foi ao encontro do que a sociedade já havia ratificado e criou um vácuo em torno da ortografia vigente no país.

Esse vácuo talvez possa explicar a infeliz iniciativa do senador Cyro Miranda (PSDB-GO), presidente da Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, ao criar um grupo de trabalho com Ernani Pimentel e Pasquale Cipro Neto, propondo uma simplificação do sistema ortográfico brasileiro.

Nela seria abolido o “h” etimológico (“homem” passaria a ser “omem”), o dígrafo “qu” (“aquilo” passaria a ser “aqilo”) e os sons [s] e [z] seriam sempre grafados pelas letras “s” e “z” –ezersísio (exercício) e caza (casa). O dígrafo “ch” também seria abolido. Teríamos xave (chave) e caxorro (cachorro).

Implantação definitiva

Numa cultura altamente letrada, a imagem da palavra é fixada por sua ortografia, portanto o sistema ortográfico é parte do patrimônio cultural da sociedade. Há que se ter muita cautela e responsabilidade ao propor qualquer alteração nesse sistema. Por isso todas as reformas ortográficas que se sucederam ao longo do século 20 foram conservadoras e pontuais, como o acordo de 1990. É exatamente o que falta a essa proposta de mutilação de nosso sistema ortográfico.

Em primeiro lugar, qualquer neófito em linguística sabe que sempre haverá desacordos entre a fala e a escrita, que são duas realidades distintas da língua. Assim, soluções mágicas como essa trazem muito mais prejuízos do que benefícios.

A escrita etimológica, que mantém o “h” em homem, harém e no prefixo hiper, é uma forma de preservar a história dessas palavras. Por outro lado, podem-se fazer distinções, como entre caçar e cassar. Deve-se também ter em mente os custos adaptativos e os gastos com reimpressões que tal reforma ensejaria.

Além disso, o prejuízo maior seria criar uma solução de continuidade na tradição escrita da língua, dificultando ou vedando o acesso das novas gerações às obras escritas desde o século 19, que são bem acessíveis aos usuários do atual sistema ortográfico, mas que não o seriam aos que só dominassem esse novo.

O mais importante é que a grande motivação alegada por seus autores –a facilitação da alfabetização e de domínio da escrita– revela uma concepção bem equivocada da questão, pois a ortografia é um problema de somenos na formação de leitores e produtores de bons textos. Por exemplo, a norma gramatical brasileira, desatualizada e adventícia, coloca problemas muito mais sérios para quem quer escrever hoje um texto na norma padrão do que o atual sistema ortográfico.

Essa pretensa reforma pode ser definida com a metáfora de um erro crasso de ortografia, e a Comissão de Educação do Senado, em vez de cometer esse erro, deveria reforçar a implantação definitiva do Acordo Ortográfico e contribuir para que o Brasil assuma o protagonismo que lhe cabe no mundo lusófono.

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Dante Lucchesi, 53, doutor em linguística pela UFRJ, é professor titular de língua portuguesa da Universidade Federal da Bahia