O número 107 da Revista Língua Portuguesa (9/14) publicou duas reportagens que tratam de escrita. Uma resumia proposta atribuída a um senador, que pretenderia simplificar a ortografia. Basicamente, sugere-se uma grafia de base fonológica (a “nova” grafia de algumas palavras proporia oje por hoje, analizar por analisar, maxo por macho, gerra por guerra, por exemplo). Tem havido desmentidos.
Mesmo assim, antes que a ideia ocorra a algum “especialista” ou a algum congressista atento às perguntas dos netos em fase de alfabetização, apresento um argumento que deveria levar ao abandono de qualquer veleidade desse tipo.
Começo levando em conta a outra reportagem publicada por aquela revista, que resenhou uma tese sobre cartas sertanejas, nas quais podem ser observadas mais adequadamente as questões em torno das quais giram de fato os problemas de ortografia.
Se o suposto projeto privilegia o que avalia como inconsistência do atual sistema (a falta de relação entre letra e som/fonema), as cartas sertanejas mostram que o “projeto” é ingênuo em relação ao objetivo que pretenderia atingir. Poderia evitar erros do tipo hoje/oje/(h)oge (porque cada letra passaria a representar um só som/fonema), mas não resolveria a maior parte dos “problemas” de grafia das cartas transcritas na reportagem citada.
Os “erros” se devem mais a outros fatores. De um lado, são efeito da variação linguística (sinhor por senhor, puqui por porque, resolve por resolver, pargi por pague) e, de outro, das hipóteses sobre junção ou separação de palavras (pulaqui, por por aqui). Ar ranjei por arranjei é um exemplo claro dessa outra “dificuldade”.
Erros decorrentes
Análises de erros de grafia mostram que são cerca de 30% os que poderiam ser evitados se uma reforma como a propalada passasse a vigorar. Os outros 70% somente seriam eliminados por um letramento consistente.
Na verdade, é o que já acontece atualmente: alunos que erram pouco obtêm esse resultado porque resolveram, mais ou menos ao mesmo tempo, tanto o problema das incongruências (casa, exemplo, excerto, caçar, cassar, jiboia, giz) e o da representação da diversidade de pronúncia (menino / minino; coruja / curuja; maudade / maldade) quanto o da divisão ou junção de “palavras”: serhumano / ser humano; por aqui / poraqui; a gente / agente; marca-mos / marcamos, etc.).
O Português Popular Escrito (Contexto), de Edith Pimentel Pinto, deveria ser leitura obrigatória em todos os cursos que tratam de alfabetização. Suas 93 páginas ensinam quase tudo o que é necessário para compreender o que se passa na cabeça dos escreventes populares e, consequentemente, em grande medida, na cabeça dos alunos dos primeiros anos escolares. Lamentavelmente, é raro que obras como essa façam parte da bibliografia de qualquer curso de letras ou de pedagogia. Ainda mais infelizmente se o livro for lido, em vez de provocar análises. Talvez provoque apenas risos de pretensa superioridade – já que o livro descobre (e explica!) grafias como preguntar (perguntar), alembrasse (lembrasse ou lembra-se), esteje/esteija (esteja), veis (vez), fauta (falta), notiças (notícias), etc. Esses, e outros casos semelhantes, têm boas explicações naquela proposta (uma pequena viagem pelas “placas do meu Brasil” no Google revela o mesmo tipo de dado; infelizmente, os comentários são sempre e apenas chacotas).
Suponhamos que os futuros educadores lessem também Erros de Escolares como Sintomas de Tendências Linguísticas no Português do Rio de Janeiro, de Joaquim Mattoso Câmara, publicado em Dispersos (Lucerna). O texto é de 1957 (!). Analisa ditados e descrições, que partes da prova de “admissão ao ginásio”. Portanto, nem atingia a população menos privilegiada, que, hoje, é a que merece a melhor e mais bem fundamentada pedagogia da escrita.
Mattoso faz uma lista dos sintomas mais comuns. Comento um caso, revelador da exigência intelectual que se deve fazer aos educadores (como exigimos de médicos e de engenheiros, quando se trata de nossa saúde ou de obras que nos afetam). Uma palavra como silvou aparece nas provas com várias grafias: silvou, é claro, mas também siuvou, caso que qualquer alfabetizador deveria saber explicar, considerada a inconsistência da grafia do fonema /s/, a vocalização de l (final da primeira sílaba) e o fenômeno da ultracorreção, que decorre da dúvida entre grafar l ou u, nessa posição, podendo resultar na opção por l quando se trata de u e de u quando se trata de l.
Um dado das “Placas do meu Brasil”: em algum lugar se anunciou uma “banda couver” (cover). Quem quiser pode rir, mas interessados em escrita devem descobrir como se chega a essa solução. Em resumos: ditongos perdem semivogais (outro> outro, peixe> pexe). Assim, um aprendiz que escreve “vassora”, com base em sua pronúncia, e é corrigido, poderá escrever “professoura”, por analogia.
Diante de “cover”, pode imaginar que é um caso do tipo “otro >outro”, e acrescenta um som à primeira sílaba. Considerando que sequências como “al” se pronunciam “au” (mal, final), é levado a concluir que o som a acrescentar é um l.
É um erro, claro, mas menos grave do que supor que se trata de desatenção, porque se trata exatamente de muita atenção. E mais grave seria imaginar que uma reforma ortográfica que simplifique regras resolverá problemas como esse.
Resumo o argumento com outro exemplo: só nos ocorre discutir se peixe se escreve com x ou com ch. Mas a verdadeira questão é se se escreve com ou sem i (peixe ou pexe), porque os erros decorrentes desse tipo de dúvida são muito mais numerosos.
Que não ocorra a ninguém reformar a pronúncia.
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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística / Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de Questões para analistas do discurso (Parábola)