Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Populismo pauta discussão sobre ortografia

A língua exerce importante papel na integração de um país. Diversidade de dialetos – ou seja, a falta de um idioma unificado –, mesmo em nações territorialmente pequenas, costuma ser um estímulo a conflitos e contribuir para alimentar movimentos de secessão. O Brasil, de dimensões continentais, e mesmo com realidades culturais que variam de acordo com cada região, teve o mérito, ao longo de sua História, de preservar a língua, sem descuidar da grafia. Sotaques à parte, o que é compreensível, o idioma que se fala, e escreve, no extremo Norte é o mesmo das populações do Sul.

Sintomaticamente, nestes mais de 500 anos o país não sofreu significativas ameaças de fragmentação territorial, graças também aos portugueses. A preservação de uma língua unificada de Norte a Sul teve papel fundamental nesse processo. Defender o idioma contra a degradação é um compromisso que precisa ser abraçado pela sociedade, no dia a dia da linguagem falada, nas escolas, em todos os campos de atividades educacionais e culturais. Contra esse pressuposto, no entanto, arma-se um movimento, deletério por princípio, que visa a promover uma reforma (mais uma) alegadamente para simplificar a ortografia e, em decorrência, facilitar a alfabetização. Entre outras propostas, pretende-se erradicar da escrita letras que não se pronunciam (como o “h” em “hora”) e a duplicidade de grafia para o mesmo som.

Enquanto esteve circunscrita a debates internos, a ideia não passou de mera curiosidade. Mas tornou-se preocupante ao alcançar o Congresso, onde encontrou acolhida. Por sua Comissão de Educação, Cultura e Esporte, o Senado criou um grupo de trabalho com o propósito de estudar as mudanças ortográficas. Tanto mais grave é que, em ato que pode contribuir para mais confusão, a presidente Dilma assinou decreto ampliando até 2016 o prazo para a adoção definitiva do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado pelos países lusófonos.

Escrever como se fala, em última instância o propósito desse tipo de iniciativa, que não esconde seu viés populista, é um aviltamento da língua. De um lado, dá abrigo a sofismas como a adoção, pelo MEC, de um livro didático com erros de Português, em nome de um pretenso “idioma popular”, como ocorreu em 2011; de outro, a deterioração da norma culta mal disfarça uma discriminação contra aqueles a quem supostamente se pretende beneficiar: o pressuposto é de que tais pessoas não teriam condições de se educar para ascender a novo patamar cultural.

Menos mal que contra essa estapafúrdia ideia há vozes representativas. O filólogo e acadêmico Evanildo Bechara a bombardeou em artigo no “Estadão”. A escritora e também acadêmica Ana Maria Machado, no Globo, observou: “O remédio (contra dificuldades da língua e na alfabetização) é mais educação”. O Senado tem de se dar conta que, ao avalizar a ideia, dá abrigo ao que pode soar como brincadeira. De mau gosto.