Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A barbárie como espetáculo

Um novo patamar na exploração da aldeia global midiática para fins de atividades terroristas marca a atuação da milícia radical Estado Islâmico (EI). Como vimos com a Al Qaeda na década passada, os métodos do EI combinam paradoxalmente extremos de arcaísmo e de contemporaneidade.

Há quase 40 anos o filósofo da comunicação Marshall McLuhan (1911-1980) já dizia: “Terroristas e sequestradores são pessoas sem identidade. Mas querem tê-la de qualquer jeito, querem divulgação, querem aparecer no noticiário”.

Meia década antes daquela entrevista, o primeiro grande marco da espetacularização do terror rompia o ideário pacifista dos Jogos Olímpicos com a ação do grupo terrorista palestino Setembro Negro, que levou ao sequestro e morte de atletas e treinadores israelenses na Olimpíada de Munique de 1972. Como afirmou um dos terroristas sobreviventes, Jamal Al-Gashey, ao cineasta britânico Kevin Macdonald no documentário “Um Dia em Setembro” (1999, vencedor do Oscar, disponível em DVD): “Antes de Munique, o mundo não tinha ideia da nossa luta, mas naquele dia o nome ‘Palestina’ foi repetido no mundo todo”.

A mesma lógica perversa repetiu-se, em nova e inédita escala, com os ataques da Al Qaeda nos EUA em 11 de setembro de 2001. Cenas típicas de um thriller de ação “hollywoodiano”, como a transformação de aviões civis em bombas voadoras, foram sequestradas de seu contexto fabulista original para maximizar o trauma na opinião pública americana e mundial.

A gravação, edição e transmissão on-line da série de degolas de reféns ocidentais pelo EI representa uma nova variante macabra a partir da mesma lógica selvagem e horripilante. Enquanto a Al Qaeda modelou seu golpe mais ambicioso na cultura dos “blockbusters”, os bárbaros estrategistas do EI parecem antenados com a predileção do público planetário pelo entretenimento serializado. Seus vídeos de terror primeiro exibem a execução de uma nova vítima, para em seguida anunciar o escolhido para a próxima atrocidade. Autopublicidade, pretensa punição e chantagem vil articulam-se num mesmo show da morte.

“A violência é menos estratégica, como seria em um movimento revolucionário, do que dramatúrgica”, afirmou em São Paulo o ensaísta americano Bill Nichols sobre o 11 de Setembro. Cada um dos atos terroristas citados visava não a conquista de poder, mas sim a difusão do medo por meio da guerra psicológica. Corações e mentes, não efetivas conquistas institucionais ou territoriais, são seu alvo.

Caldo de cultura

Mas há uma distinção importante entre o megaevento homicida da Al Qaeda e as atuais execuções em série, não apenas quanto ao número de vítimas e ao local escolhido para perpetrá-los (o solo americano, no primeiro caso, os territórios na Síria e no Iraque sob domínio da milícia radical islâmica, no segundo).

Nichols destacou como o atentado de 11 de setembro de 2001 se caracterizou por, “em vez de utilizar a mídia para difundir a ansiedade, usar a mídia como meio de intensificar o trauma imediato”. O EI, agora, explora a mídia simultaneamente nessas duas dimensões. A um só tempo, dilata o terror e potencializa o choque.

Como destruir esses fanáticos? A resposta inicial da coalizão liderada pelos EUA, incluindo aliados europeus e árabes, por meio de bombardeios aéreos a posições estratégicas do EI no Iraque e na Síria, é insuficiente. Irá Barack Obama reverter radicalmente a linha mestra de sua política externa, de retração dos militares americanos de zonas de conflito? Ele garante que não. Depois da assumida perplexidade frente à decapitação do primeiro refém americano, quando Obama reconheceu não ter uma estratégia definida para combater o EI, seus planos parecem agora coincidir com os conselhos dados publicamente pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger: blitz aérea e apoio para que exércitos e grupos regionais complementem o trabalho árduo por meio de batalhas territoriais.

Mas, para além da resposta militar arquitetada por Kissinger e do garroteamento financeiro do EI, Obama acertadamente frisou na semana passada a importância do combate focar ainda o front dos sentimentos e ideias: “Nenhuma força externa pode trazer uma mudança de corações e mentes”.

Em sua coluna na “Folha de S. Paulo” do domingo passado [28/9], Clóvis Rossi destacou uma iniciativa exemplar nessa direção. Trata-se da campanha on-line “NotInMyName”, desenvolvida pela Fundação Mudança Ativa no Reino Unido e na França, na qual jovens muçulmanos repudiam a “propaganda do ódio do Estado Islâmico”, nas palavras do fundador e presidente do grupo, Hanif Qadir.

Liquidar o EI não basta. A vitória sobre a barbárie só será sólida e duradoura se for eliminado o caldo de cultura anti-iluminista que alimentou seu surgimento. Do contrário, não tardaremos a assistir à produção por seu sucedâneo de novos espetáculos de selvageria.

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Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários