Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A guerra também é uma narrativa

A França está em guerra. E nesta guerra, o inimigo merece, da parte de políticos e jornalistas, adjetivos como “bárbaros”, “monstros”, “terroristas”, “decapitadores”.

Será que eles são os únicos bárbaros?

Quando se sabe o que os Estados Unidos fizeram no Vietnã na década de 1960 (napalm e massacres de civis, além de tortura) e no Iraque a partir de 2003 (162 mil mortos) e o que a própria França fez nas guerras coloniais na Indochina (o Vietnã sob domínio francês) e na Argélia, os adjetivos podem mudar de campo. Basta conhecer um pouco a história. E a morte do jovem palestino queimado vivo pelos israelenses para vingar o assassinato de três jovens de Israel, assassinados provavelmente pelo Hamas, não é um ato bárbaro?

Seria um acaso o fato de os prisioneiros ocidentais decapitados pelos combatentes do Estado Islâmico usarem um uniforme laranja, que lembra o que os prisioneiros islâmicos vestiam em Guantánamo, onde eram torturados com sofisticados métodos de tortura física e psicológica?

A imprensa de um país em guerra tem duas opções: continuar a tratar os fatos fingindo neutralidade ou se engajar na guerra através da semântica minuciosamente trabalhada para defender os interesses do país. As imagens que chocam devem ser evitadas, a não ser que seja para provar que o “bárbaro” é o inimigo.

Há pouco mais de duas semanas, em seus comunicados oficiais o governo francês começou a chamar de “Daesh” o Estado Islâmico, a quem a coalizão internacional de 40 países (!) declarou a guerra. Hollande lançou o nome num discurso oficial e foi logo seguido por todos os ministros.

Esse nome, explicou Laurent Fabius, ministro das Relações Exteriores, é o acrônimo de Estado Islâmico em árabe. E quase toda a mídia seguiu a determinação do governo, que entende que os “terroristas” do Daesh não representam nenhum Estado e nomeá-los como se autonomeiam é uma forma de reconhecimento do qual a França não quer participar.

Experiência replicada

As redações francesas estão divididas quanto ao nome do inimigo, mas todos os jornais, revistas e canais de televisão, assim como as rádios, condenaram os sequestros seguidos de decapitação de um americano e de um inglês nas mãos do Estado Islâmico, do Daesh. Na semana retrasada, um francês foi decapitado nas montanhas argelinas por dihadistas que se dizem ligados ao Estado Islâmico e vimos em várias cidades passeatas e manifestações de solidariedade à família contra a “barbárie”.

O Le Monde, como outros jornais, ignorou a tentativa de controlar seu noticiário. Continuou a chamar o Estado Islâmico exatamente assim. Já o diretor de Redação do canal France 24 – o canal all news internacional do serviço público – chegou a escrever uma recomendação inflamada para exigir que seus jornalistas participem da linha editorial do canal, de condenação da “barbárie”. Marc Saikali escreveu: “Os combatentes dihadistas do suposto Estado Islâmico são bárbaros, terroristas, selvagens. Nesta guerra, mais que nunca, existem os bons e os maus”. Recomendou o tom das entrevistas e discussões. O bandido foi designado. Eles são o mal, somos o bem.

Chamar todo combatente inimigo de “terrorista” já é uma forma de estigmatizar a luta que ele trava. O problema é, sabemos, que os franceses usaram napalm na Indochina antes mesmo dos americanos. Estes iniciaram a guerra contra o povo vietnamita logo depois da derrota dos franceses na batalha de Dien Bien Phu, em 1954, e continuaram os massacres de populações civis, seguindo o rastro dos franceses que, a partir daquela experiência, criaram a teoria da “guerra contrarrevolucionária” ou “antissubversiva”.

A diferença

Naquela guerra colonial, a França não brilhou pela civilização, mas sim pela barbárie. Na página 54 de seu livro Escadrons de la mort, l’école française, a jornalista Marie-Monique Robin relembra fatos que hoje parecem esquecidos :

“No dia 29 de julho de 1949, em artigo do jornalista Jacques Chégaray do jornal Témoignage chrétien, ele conta a visita a um posto na mata de Phul Cong, no Tonkin : ‘Aqui é meu escritório, explica um oficial francês. A mesa, a máquina de escrever, o lavabo; e lá, no canto, a máquina de fazer falar. (…) Sim, o ‘telefone’! Ele é muito bom para o interrogatório dos prisioneiros. O contato, o polo positivo e o polo negativo, a gente liga e o prisioneiro cospe o que sabe…”

Mais tarde, um outro oficial levou o jornalista a um pequeno posto de Cholon. Ele descobriu em cima da mesa de trabalho um crânio humano: “Um ‘viet minh’, fui eu que cortei a cabeça dele. Ele gritava. Você precisava ver. Hoje uso como peso de papel. Mas você não imagina o trabalho para tirar a pele. Tive de pôr para ferver por quatro horas; depois, raspei com uma faca…”

O jornalista conclui:

“Protestamos em 1944 quando descobrimos os suplícios da Gestapo: a banheira e os choques elétricos. Gritamos horrorizados quando descobrimos na mesa de um comandante do campo de Buchenwald a cabeça mumificada de um prisioneiro… Quatro anos depois… Hoje, esses métodos que reprovamos com indignação fazem parte dos hábitos”.

No livro, são contados outros casos de decapitação de prisioneiros vietnamitas após tortura.

Quem duvida que militares americanos, franceses, sírios, israelenses, iraquianos, iranianos ou ingleses cometem os mesmos atos bárbaros dos combatentes do Estado Islâmico que hoje horrorizam os ocidentais?

Sabemos que a guerra também é uma narrativa que pode ser controlada nos menores detalhes. A diferença é que os exércitos regulares não costumam divulgar na internet seus atos de barbárie.

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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris