Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pensamento étnico-racial com atualidade ímpar

Para ser jornalista, segundo Olavo Bilac (1865-1918), faz-se necessário demonstrar sensibilidade, opinião que encontra resistência por parte dos defensores de um fazer jornalístico meramente impessoal, objetivo e imparcial:

“Oh! ideal sublime! ser como as engenhosas máquinas americanas de escrever, – uma fila de teclas, um rolo de tinta, uma bobina de papel – mais nada… Deixar o jornalista que os acontecimentos, os louvores, os vitupérios, as calúnias, os processos de responsabilidade, as cartas anônimas passem sobre a sua alma como as rajadas do vento passam por cima das rochas vivas sem que as enruguem nem abalem… Que grande força daria isso ao jornalista! Para esse filho de Gutemberg, podem ter nervos o político, o negociante, o industrial, o poeta: não o homem de jornal, que, para bem esclarecer a opinião, deve ficar inabalavelmente e impassivelmente plantado no meio do mar da opinião pública, – como um farol que, para dar luz, não precisa sentir, e, para guiar os navios errantes, não carece de ter papilas nervosas na sua grossa pele de pedra e ferro” (in “Sem Nervos”, Gazeta de Notícias, 11/06/1895).

Praticando um jornalismo atento às “nervuras do real”, mister se faz mencionar a importância do pensamento étnico-racial de Olavo Bilac, o que desmente a “surrada” tese de que o autor só se empenhou em lapidar sonetos parnasianos, visando muito mais à educação sensível dos leitores do que a sua conscientização política. De maneira arrojada, Bilac criticou a exploração do continente africano realizada perversamente pelo modelo colonial europeu, cinicamente constituído para propagar valores civilizados, quando se efetivava, na verdade, o nefasto processo de apropriação violenta do patrimônio material e imaterial desenvolvido pelos colonizados:

“A única vítima a lamentar é e será sempre a África, a que a civilização vai levar morte e a angústia, com o caridoso pretexto da civilização. Como se adiantasse alguma cousa a um povo selvagem esta cousa chamada civilização que lhe vamos impor, e que consiste unicamente e exclusivamente nisto: a imposição de um Deus, em que já não cremos, a imposição de costumes de que já nos rimos, a imposição de vícios e de erros que já nos revoltam e que já nos repugnam… A civilização! Pobres tribos selvagens, mais puras e mais nobres de que nós, na sua selvageria… Vença Portugal ou vença a Inglaterra ou vença a Alemanha, a tua sorte, pobre África infeliz e bárbara! será sempre a mesma sorte do rato, ferido de morte, à espera de que um dos gatos vença para devorá-lo depois!…” (in “Ratos entre Gatos [Cia]”, Gazeta de Notícias, 16/05/1890).

Que fizemos nós, afinal?

Impressiona a qualidade reflexiva de Bilac sobre as condições de miserabilidade imposta à comunidade negra escravizada tanto em África como no Brasil. Em torno das comemorações do 13 de maio como marco abolicionista, Olavo Bilac apresenta avançado parecer, denunciando o racismo estrutural que manteve os afrodescendentes em uma posição desfavorável no ingresso à cidadania brasileira de primeira classe:

“Não posso resistir ao desejo de declarar que acho soberanamente injusta essa pecha de ingratidão atiradas aos libertos. Ingratos, por quê? Porque não aceitam como esmola ou favor o que foi apenas justiça? Que gratidão deve o roubado ao roubador que acaba confessando o roubo e restituindo-lhe o que lhe roubara? O cativeiro era a mais torpe, a mais criminosa das espoliações. E a sociedade, que aceitava, admitia, e defendia tal espoliação, – esta é que deveria, todos os anos, no dia 13 de maio, penitenciar-se publicamente, com vergonha e remorso, da feia culpa de haver por tanto tempo demorado a vitória da justiça.

A comemoração dos abolicionistas mortos e a glorificação dos abolicionistas vivos não devem ser feitas pelos libertos: devem ser feitas pelo país inteiro, e principalmente pelos cidadãos que nasceram livres, filhos de pais livres, e netos de escravizadores. Esses, sim, devem gratidão, e gratidão sem limites, aos que livraram o Brasil da desonra de possuir escravos.

Creio que os libertos não somente não nos devem gratidão alguma, como ainda têm o direito de nos lançar em rosto o não termos ainda completado a obra da Abolição.

Que fizemos nós, afinal? Proclamamos a liberdade dos cativos, mas não tratamos de assegurar a sua vida e a sua felicidade. Não os instruímos, não os educamos, não lhes demos trabalho; estupidamente e cruelmente admitimos que já tínhamos feito por eles o mais que podíamos fazer.

Que escolas agrícolas, industriais ou profissionais fundamos, de 1888 até hoje, para transformar em verdadeiros cidadãos os homens que havíamos explorado como animais? Os que lutaram e venceram, lutaram e venceram sozinhos, sem o nosso auxílio; e não têm conta os que morreram, nesses sertões ignorados, à míngua de trabalho e de instrução, devorados pela miséria, pela ignorância, pelo alcoolismo, pelo abandono moral…

E ainda exigimos gratidão! E ainda queremos que as vítimas transformem em beneméritos os seus algozes de ontem! La Fontaine faria com isso uma linda fábula: o leão sacrificando os animais sem força, e estranhando que eles lhe não agradecessem o favor…” (in “Crônica”, Gazeta de Notícias, 19/05/1907).

Como vimos, o pensamento étnico-racial presente no jornalismo combativo de Olavo Bilac apresenta uma atualidade ímpar, pois denuncia o diferencial de raça/etnia enquanto elemento constitutivo da reprodução das desigualdades e do acesso aos chamados direitos de cidadania, além de integrar o processo reivindicatório da comunidade negra em matéria de políticas públicas e ações afirmativas que possam autenticamente contemplá-la, no contexto de uma sociedade plenamente democrática e justa.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários