O resultado do primeiro turno das eleições 2014, pelo menos no que diz respeito ao Congresso Nacional, chama a atenção. Parlamentares com posições conservadoras em relação a causas sociais se consolidaram como maioria na eleição da Câmara dos Deputados, de acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), consolidada e respeitada organização que há 31 anos monitora e estuda ações dos poderes da República, especialmente o Congresso Nacional. Houve aumento do número de militares (incluindo policiais), de empresários, de ruralistas e de outros segmentos mais identificados com o conservadorismo (o termo conservadorismo é usado aqui no sentido da ciência política referente a posições alinhadas com a manutenção – contrária a mudanças – de determinada ordem sociopolítica, econômica, institucional, ou de crenças, usos e costumes de uma sociedade).
Um balanço mais definitivo do número dos evangélicos eleitos (considerada a dificuldade de identificação dos novatos que não têm títulos religiosos atrelados ao nome) já pode ser apresentado, depois de contatos com vários pesquisadores e especialistas, e acesso à lista divulgada pela assessoria da Frente Parlamentar Evangélica, publicada no jornal O Globo. Fica nítido que este grupo, por conta do perfil dos reeleitos e seus partidos, certamente “engrossará” o cordão conservador na Câmara, mas não alcançou o patamar numérico almejado/propagado.
As estimativas analíticas indicavam a denominada “bancada evangélica” chegaria a 100 parlamentares, mantidos os 20% de aumento que se concretizaram nos últimos pleitos. A Frente Parlamentar Evangélica apregoava um crescimento de 30%. Era parte da campanha de lideranças mais destacadas desse segmento de que os evangélicos ganhariam mais poder com mais vagas no Congresso. Nomes como o do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) eram propagados com vistas ao alcance de um milhão de votos. Um de seus apoiadores, o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, chegou a afirmar ao jornal Folha de S.Paulo: “Se o Feliciano tiver menos de 400 mil votos na próxima eleição, eu estou mudando de nome”. Ele ironizava, em 2013, as ações de movimentos sociais contra a presença do deputado na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara (CDHM). E acrescentou: “Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014”.
A segunda lista do Diap
Esta também foi a aposta do partido do deputado Feliciano, o PSC, que decidiu lançar o pastor Everaldo como candidato à Presidência da República na esteira do sucesso alavancado ao partido com as polêmicas em torno do caso da presidência da CDHM. Essa candidatura revelou-se fracassada, como será abordado adiante.
Já com a divulgação das primeiras listas de deputados evangélicos, ficava claro que as estimativas de 20 a 30% de aumento da bancada não seriam alcançadas. Números se apresentavam, nas mídias religiosas e não-religiosas, ou bem abaixo dos cerca de 100 parlamentares previstos (57 ou 66, entre os mais “realistas”) ou mais próximos da previsão, porém ainda abaixo dos 100 (80 a 82, entre os mais otimistas).
O Diap divulgou uma primeira lista, em 6 de outubro, com 53 nomes, indicada como “preliminar”. Depois veio a “lista provisória”, divulgada para a imprensa pela Frente Parlamentar Evangélica (FPE), com 80 nomes (corrigida depois para menos, 79 parlamentares). A relação do Diap foi publicada em sites evangélicos como o Gospel+ (que atualizou para 57 eleitos, mas destacou a diminuição) e o Gospel Prime (que atualizou para 66, apesar de ter evitado registrar o número total, que, segundo o site, resultou em 66). A primeira relação da FPE, não corrigida, foi publicada pelo jornal O Globo, que destacou o crescimento de 14%. Esta matéria foi reproduzida pelo site Verdade Gospel, que celebrou os números como crescimento expressivo de 14%, com 80 indicados). O Diap publicou, em 8 de outubro, uma segunda lista baseada na primeira lista provisória, não corrigida, da FPE, e acrescentou mais três nomes, apresentando um total de 82 parlamentares evangélicos.
Aumento de 3% na Câmara
Com base nestas listas, em checagem de material de divulgação dos candidatos, bases de dados, contatos locais, e ouvidos analistas e especialistas, foi possível chegar a uma lista mais próxima do definitivo, com 72 nomes. Em comparação com o grupo de 70 eleitos/as na atual legislatura, houve 3% de aumento de deputados identificados como evangélicos na Câmara. Um número muito abaixo dos 20% ou 30% apregoados e ainda bem inferior aos 14% celebrados pela FPE.
Pode-se inferir que a retórica do terror sobre as “ameaças à família” e do “comunismo” não tiveram o efeito numérico almejado. A relação da FPE, que, inicialmente, chegava a 80 nomes, parece ter sido resultado de uma “caça a nomes” para ampliar a porcentagem de aumento a ser divulgada e evitar divulgar o fracasso numérico, já que, também, sete deputados/as não foram reeleitos/as. Isto pode ser assim entendido porque nove deles não foram identificados, por meio de pesquisa e consultas, como evangélicos: ou declararam filiação católica-romana; ou dizem “se considerar cristãos” e foram apenas apoiados por lideranças de igrejas; ou concorreram por partidos identificados com igrejas, PRB (identificado com a Igreja Universal do Reino de Deus), e PSC (identificado várias denominações) mas não são evangélicos. Um deles, eleito pelo PSC-RJ, foi retirado de uma segunda lista divulgada pela FPE. A relação atualizada do Diap tem a lista da FPE acrescida de três nomes. Um deles é evangélico, de fato. Os outros dois não são evangélicos: um é católico e o outro não revela identidade religiosa.
A seguir uma versão final, com revisão das relações apresentadas pelo Diap e pela FPE (descarte de nomes, correções na situação do/a candidato/a e nas igrejas respectivas). Neste levantamento de mídia, religião e política, o número de deputados/as evangélicos/as eleitos/as é 72, o que equivale a 3% de aumento desta representação na Câmara Federal.
Nomes que constam na lista da FPE, publicada pelo jornal O Globo e assimilada pelo Diap, e devem ser desconsiderados:
Nomes que constam na lista do DIAP, e devem ser desconsiderados (novos em relação à lista da FPE assimilada pelo DIAP):
Perfil dos/as 72 deputados/as evangélicos/as eleitos/as
Do quadro dos eleitos, quatro nomes se destacaram em número e votos. O pastor ligado à Assembleia de Deus Marco Feliciano (PSC-SP) foi bem sucedido na reeleição (398 mil e 87 votos), tendo dobrado o número de votos recebidos em 2010 e alcançando o terceiro lugar em seu estado. Porém, não chegou ao poder de voto pregado e almejado. Ainda assim, a quantidade de votos recebidos pelo ex-presidente da CDHM é muito expressiva, se levadas em conta as controvérsias que envolveram o seu nome, atreladas a denúncias de racismo e homofobia. Indício de que os seus eleitores, fundamentalmente evangélicos, mas não só, desprezaram as denúncias e se relevam apoiadores da postura conservadora assumida pelo pastor, que atribuiu a si próprio como representante da defesa da moralidade cristã.
Na casa dos 330 mil votos também está colocada a novata Clarissa Garotinho (PR-RJ) [335 mil e 61 votos], ligada à Igreja Presbiteriana, filha do ex-governador do Rio de Janeiro, deputado federal pelo PR Anthony Garotinho, novamente candidato ao cargo majoritário no estado (perdeu a vaga do segundo turno para o também evangélico Bispo Marcelo Crivella). Esta ampla votação revela o quanto a marca “Garotinho” representa para a população do Estado do Rio de Janeiro, a despeito de todas as denúncias que envolvem o nome do ex-governador.
O Rio de Janeiro também foi responsável pelos 232 mil 708 votos recebidos pelo líder do PMDB na Câmara, o economista e empresário Eduardo Cunha, ligado à Igreja Sara a Nossa Terra, terceiro mais votado no estado. Eduardo Cunha também tem controvérsias no seu histórico como líder do PMDB, tendo sido o maior opositor à aprovação do Marco Civil da Internet, como representante das operadoras de telefonia na casa.
O controvertido Pastor Eurico (PSB-PE), da Assembleia de Deus, também teve expressivo apoio, alcançando 233 mil 762 votos. Ele ocupou as mídias em abril, quando decidiu protocolar novo texto do projeto dos evangélicos que havia sido arquivado pela Câmara em julho de 2013, conhecido como “cura gay”. Depois ganhou destaque novamente em maio, quando agrediu verbalmente a apresentadora Xuxa, convidada da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, para a sessão que discutia a aprovação da lei contra a violência doméstica contra crianças e adolescentes, banalmente denominada “Lei da Palmada”. Ele foi afastado da CCJ pelo PSB, mas retornou em julho.
Já a novata Christiane Yared (PTN), pastora da Catedral do Reino de Deus, chega à Câmara na condição de deputada mais votada da bancada paranaense. Em sua estreia nas urnas, ela recebeu mais de 200 mil votos.
Esses quatro parlamentares tiveram votos suficientes para se elegerem sozinhos, sem a necessidade de somar os votos do partido ou coligação. Apenas 35 deputados federais alcançaram este feito no resultado geral.
Espaço de poder
Para além desses destaques, vale atentar para o predomínio do PRB entre os evangélicos, com 15 deputados/as eleitos/as (quase o dobro em relação à bancada 2010-2014, composta por oito evangélicos). Em seguida vem o PSC, com oito eleitos/as (três a menos, em relação à bancada 2010-2014), o PR, com sete parlamentares (metade dos que tinha na atual legislatura), o Solidariedade (novo partido), com seis eleitos/as e o PSD, o PMDB e o PSDB, com cinco. Vale destacar a presença de um candidato do PSOL, pelo Rio de Janeiro.
Os/as deputados/as federais eleitos/as estão vinculados/as a quinze igrejas diferentes, onze delas identificadas com o universo pentecostal, o que confirma a hegemonia desse segmento no campo político. As Assembleias de Deus predominam com 28 eleitos/as, seguidos da Universal do Reino de Deus, com 11. Nota do Conselho Políticoda Convenção Geral das Assembleias de Deus do Brasil (CGADB) lista 24 eleitos/as entre os seus quadros, mas não registra três nomes de assembleianos de igrejas ligadas à CGADB: André Abdon (PRB/AP), Toninho Wandscheer (PT/PR), Geovania de Sá (PSDB/SC). As quatro igrejas históricas presentes na Câmara são a Metodista, a Luterana, a Presbiteriana e a Batista, esta última com nove eleitos/as e as outras com um cada.
É sempre importante destacar que com este perfil acima, a denominada “bancada evangélica” não representa um bloco evangélico que pensa e age de forma única. Assim como não existe um voto evangélico, e muito menos um representante deste grupo, que fale em nome dele, o grupo eleito está vinculado a diferentes igrejas, que formam um universo, plural e cheio de tensões. As disputas dos grupos que mais se destacam no campo religioso, Assembleias de Deus vs. Assembleias de Deus vs. Igreja Universal do Reino de Deus vs. celebridades evangélicas com poder de barganha, estão refletidas no congresso e nas articulações políticas. Além de não crescer como prometiam lideranças religiosas midiáticas, a “bancada” perdeu sete evangélicos/as que se recandidataram, mas não foram reeleitos, e quase metade do grupo foi renovada. Entre os/as novos/as há, pelo menos, três parlamentares de partidos e pautas de esquerda (PT e PSOL) e duas negras com pautas relacionadas à defesa da mulher. Dessa forma, a partir de 2015, é possível que haja novos embates em torno da Frente Parlamentar Evangélica, inclusive com uma dissidência que vá além das ações de defesas e combates. Dada a diversidade de teologias, visões de mundo e ações pastorais no campo evangélico, o grupo identificado com este segmento no Congresso carece de parlamentares que assumam postura que vá além da negação e do combate a outros segmentos e que assumam uma pauta política propositiva, em defesa da sociedade e da democracia.
De qualquer forma, é fato que entre evangélicos há muito pragmatismo político e pouca religião. Por isso, é preciso reconhecer que a Frente Parlamentar evangélica tem servido de trampolim para muitas posturas conservadoras – estas, sim, têm prevalecido como pauta comum da maioria dos parlamentares, o que deve se consolidar na próxima legislatura. Há nomes de peso das igrejas representadas, que buscam espaço de poder na esfera pública, e que, reeleitos/as ou eleitos com significativa quantidade de votos, devem melhor coordenar e articular os interesses do grupo no Congresso Nacional a partir de 2015.
Marina Silva e Pastor Everaldo
Nunca na história deste país a religião esteve tão em evidência numa campanha eleitoral, muito fortemente por conta de, pela primeira vez, o processo ter tido dois candidatos vinculados diretamente ao mundo evangélico.
A assembleiana Marina Silva ganhou muita expressão quando alçada a candidata à Presidência da República pelo PSB, após a morte de Eduardo Campos, com quem estava na chapa como vice. Essa expressão teve estrondoso reflexo nas pesquisas, o que se concretizou imediatamente no “abandono” do assembleiano Pastor Everaldo, da parte de lideranças evangélicas políticas e midiáticas da candidata da mesma igreja. Isto se deu a despeito de ser o partido de Marina Silva o PSB e do histórico de rejeição à ex-senadora da parte desse mesmo grupo em 2010. As posturas anti-PT e anti-reeleição de Dilma Rousseff apregoada por esses líderes falou mais forte, como deve continuar falando no segundo turno.
Apesar das profecias de evangélicos, amplamente divulgadas nas mídias sociais, de que Marina Silva seria a presidente do Brasil e dos apoios de grupos os mais diversos fora do campo religioso (esquerda insatisfeita com os governos do PT e pessoas que apostaram no discurso da nova política disseminado pela candidata), ela foi perdendo expressão e na última semana de campanha revelava a possibilidade de não alcançar o segundo turno. E foi o que aconteceu. Marina Silva repetiu o desempenho eleitoral de 2010 e novamente ficou em terceiro lugar nas eleições. O que se alterou em 2014 em relação a 2010 foi o aumento de 2% no número de votos válidos para a candidata: 21% ante 19% há quatro anos. A liderança do PSB atribui aos discursos de ataque à figura de Marina Silva, proferidos durante a campanha por Aécio Neves que disputava o segundo lugar com ela, mas especialmente por Dilma Rousseff, à queda vertiginosa nas pesquisas. No entanto, analistas avaliam a perda de votos de Marina Silva relacionada às mudanças de caráter conservador em itens do programa de governo e alterações constantes de postura e discursos, algumas vezes depois de sofrer pressão de lideranças evangélicas, o que teria gerado perda de credibilidade de parcela dos eleitores.
O candidato do PSC à presidência Pastor Everaldo, que chegou, no início da campanha, a trabalhar com a estimativa dos seus apoiadores (lideranças políticas e midiáticas evangélicas) de alcançar 10% dos votos, teve pouco mais de 780 mil votos em todo o país, somando 0,75% dos votos válidos. Ele ficou atrás da candidata Luciana Genro (PSOL-RS), que alcançou 1,55% dos votos. Ela havia declarado que consideraria uma vitória terminar a campanha na frente do Pastor Everaldo. O fracasso da candidatura do Pastor Everaldo se completou ao não conseguir eleger o próprio filho, o candidato a deputado federal pelo PSC-RJ Filipe Pereira, que recebeu apenas 20 mil 814 votos (0,27%).
O apoio de Marina Silva e do Pastor Everaldo a Aécio Neves (PSDB), na disputa pela Presidência da República no segundo turno das eleições, terminam por confirmar o caráter pragmático-conservador das duas campanhas.
Para refletir
Segundo as pesquisas do Diap, o Congresso que assume em 2015 será muito conservador. Por exemplo, caiu o número de parlamentares defensores de causas sociais (levantamento também em andamento pelo Diap). “O novo Congresso é, seguramente, o mais conservador do período pós-1964. As pessoas não sabem o que fazem as instituições e se você não tem esse domínio, é trágico”, avalia o diretor do Diap, Antônio Augusto Queiroz.
Este aspecto é elemento presente desde as eleições de 2010: o neoconservadorismo predominante no cenário evangélico. O conservadorismo dos evangélicos no Brasil não é dado novo, diante da formação deste segmento cristão no século XIX baseada no fundamentalismo bíblico, no puritanismo e no sectarismo. Muito se transformou nestas bases ao longo do século XX, emergiram grupos abertos à atuação social, ao ecumenismo, mas o conservadorismo sempre foi predominante entre os evangélicos. Foi ele que provocou a omissão das igrejas frente à implantação da ditadura militar no Brasil (1964-1985) e também tornou possível o alinhamento de boa parte das lideranças evangélicas com o governo de exceção.
Nos anos 2000 temos uma nova face do conservadorismo religioso, um neoconservadorismo, que emerge como reação a transformações socioculturais que o Brasil tem experimentado, em especial a partir dos anos 2002, com a abertura e a potencialização de políticas do governo federal voltadas para direitos humanos e gênero. O “neo” se deve à visibilidade mais intensa de lideranças evangélicas que se apresentam como pertencentes aos novos tempos, em que a religião tem como aliados o mercado e as tecnologias, mas que se revelam defensoras de posturas de um conservadorismo explícito. Lideranças midiáticas se fortalecem na esfera pública, como o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, o pastor do Ministério Tempo do Avivamento (Assembleia de Deus) deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), o senador sem-igreja Magno Malta, cantores gospel e novas celebridades religiosas. Além da visibilidade midiática que as transforma em autoridades/referências religiosas que ultrapassam até mesmo os arraiais evangélicos, essas pessoas têm em comum discursos de rigidez moral e de conquista de poder na esfera pública.
O conservadorismo evangélico explícito dos anos 2010, que se relaciona a este maior, expresso no “novo” Parlamento, está dentro de um contexto de fortalecimento de posturas conservadoras na esfera pública brasileira. Um desdobramento dos dados de pesquisa eleitoral realizada pelo Datafolha em outubro de 2013 revelou que a maior parte dos brasileiros se identifica com valores de direita. A separação foi feita com base nas respostas dos entrevistados a perguntas sobre questões sociais, culturais e políticas, como a pena de morte e o papel dos sindicatos na sociedade. Dos entrevistados, 38% foram classificados como de centro-direita, 26% de centro-esquerda, 22% de centro, 11% de direita e 4% de esquerda.
Em acordo com o que o Datafolha indica, vários analistas sociais têm sugerido que uma tendência política tradicionalista em questões morais e sociais, defensora da liberdade individual e do livre mercado está em ascensão no Brasil. O sucesso de políticos como os deputados pastor Marco Feliciano e o não-religioso Jair Bolsonaro, de partidos como o Social Cristão (PSC), que lançou candidato o Pastor Everaldo (Assembleia de Deus) à presidência da República, e de celebridades religiosas como o pastor Silas Malafaia, é elemento emblemático. Com discursos dentro do ideário da moral cristã (contra o aborto e o controle da natalidade e pelo tratamento psicológico a homossexuais) e de princípios caros ao liberalismo na política e na economia (Estado mínimo e elogios ao livre mercado), essas personagens têm captado apoios para além do círculo religioso com o mote “é preciso salvar a família”. Na visão destas lideranças a família está sob a ameaça dos movimentos civis por direitos sexuais e enfrentamento da violência sexual, reforçados pelas ações do governo federal, desde que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu em 2002 com abertura de mais espaços para legislação que responda a essas demandas. Alguns apelos ainda tomam como ingrediente uma possível ameaça de o comunismo tomar conta do Brasil. Segundo esses discursos, este seria o verdadeiro propósito do governo do PT em nível nacional.
Todo este processo tem a mediação das mídias, que historicamente têm um alinhamento com valores e políticas conservadoras, dado o perfil dos seus proprietários, e que, pelo menos na última década, em especial na cobertura noticiosa, tem dado amplo espaço para analistas e comentaristas defenderem abertamente essas perspectivas, como é o exemplo de Arnaldo Jabor, Alexandre Garcia e Merval Pereira, nas Organizações Globo; Reinaldo Azevedo, na revista Veja; José Luiz Datena e Boris Casoy, no Grupo Bandeirantes; Marcelo Rezende, na Rede Record; Luiz Pondé, a TV Cultura; e mais recentemente, Rachel Sheherazade, no SBT. Soma-se neste quadro elemento significativo: a identificação de não poucos casos de racismo em estádios de futebol e em inúmeras postagens em redes digitas e campanhas como a da redução da maioridade penal, liderada por um senador evangélico.
Torna-se nítida uma articulação política e ideológica conservadora em diferentes espaços sociais – do Congresso Nacional às mídias – que reflete um espírito presente na sociedade brasileira, de reação a avanços sociopolíticos. Estes dizem respeito não só a direitos civis homossexuais e das mulheres, como também aos direitos de crianças e adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e da Comissão da Verdade, e de políticas de inclusão social e cidadania. Nesta articulação a religião passa a ser uma porta-voz.
A postagem de um pastor de uma igreja evangélica no Facebook reflete bem este espírito: “Devemos nos unir cada vez mais, já somos milhões de evangélicos no Brasil, fora os simpatizantes. Temos força, é claro que nossa força vem de Deus. Precisamos nos mobilizar contra as forças das trevas, que querem desvirtuar os bons costumes e a moral e, principalmente que querem afetar a honra da família. Se o meu povo que se chama pelo meu nome se humilhar e orar, não tem capeta que resista”. E as palavras do deputado Marco Feliciano ecoam como profecia: “Graças a Deus permanecemos firmes até aqui. Chegará o tempo que nós, evangélicos, vamos ter voz em outros lugares. O Brasil todo encara o movimento evangélico com outros olhos”.
O projeto político que se desenha, de fato, pouco ou nada tem a ver com a defesa da família… os segmentos da sociedade civil, incluindo setores evangélicos não identificados com o projeto aqui descrito, que defendem um Estado laico e socialmente justo, têm grandes tarefas pela frente. São movimentos da dinâmica sociopolítica e religiosa que vão marcar novas tendências e merecem ser acompanhados nos tempos por vir.
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Magali do Nascimento Cunha é jornalista e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo