É comum pensar que o maior pecado que o jornalista político pode cometer é o do enviesamento, da parcialidade. O raciocínio se baseia na ideia de que a cobertura precisa estar equilibrada, que haja espaço para as vozes envolvidas, e que exista o contraditório. Jornalistas e veículos deveriam apresentar versões distintas e personagens opostos com iguais condições de visibilidade, aproximando-se de uma aspirada isenção.
Se já é difícil garantir essa equidade no dia a dia, o que dirá de coberturas eleitorais, quando os nervos estão à flor da pele e as cobranças (de lado a lado) são mais asfixiantes? Como encontrar um ponto de equilíbrio em disputas tão fragmentadas como as das eleições proporcionais? Neste caso, em geral, a saída é simplesmente ignorar a corrida, escorando-se nas dificuldades operacionais de acompanhar tantos candidatos. Desta forma, o público fica privado de informações sobre os postulantes aos cargos da Câmara Federal e assembleias legislativas, e o eleitor precisa buscar em outras fontes as razões que vão ajudá-lo a escolher alguns em detrimento de muitos.
Não é à toa que as redações chamam as campanhas de corridas eleitorais. Como na cobertura de maratonas, repórteres e editores se concentram no pelotão de elite e fazem vista grossa para os demais participantes, apresentados ora como anônimos ou excêntricos. A estratégia quase sempre dá certo, a não ser que algum corredor se despregue da massa amorfa e surpreenda a todos, ingressando no pelotão de isolamento.
Enquanto as redações não encontram maneiras de cobrir mais atentamente as eleições proporcionais, reformulo a questão anterior: como encontrar um ponto de equilíbrio em disputas polarizadas como as do segundo turno?
Nessas situações, o mais comum é que a mídia reproduza e amplifique o tiroteio. Neste sentido, a tentação (ou o perigo) é oferecer um jornalismo declaratório, apoiado nas ofensas, provocações e desqualificações de um para outro. Para não serem tragados nesse abraço de afogados, jornalistas precisariam se fixar em outros pontos de observação, desvinculando-se das mesquinharias cotidianas e concentrando-se em debates programáticos, na viabilidade de propostas e no impacto desses cenários para o público eleitor. Em 1989, não houve tal preocupação e – por omissão, no mínimo! – a mídia contribuiu para a eleição de Fernando Collor de Mello.
Na verdade, existe um outro pecado no jornalismo político para além do enviesamento: é a falsa imparcialidade, a tentativa de apresentar ao público que os grupos de mídia não têm candidatos de sua preferência, que dão tratamento igualitário aos competidores. Nessa operação de travestimento, são veiculados conteúdos que estão longe de serem equilibrados. Informações que atendam aos interesses do grupo midiático e que beneficiem certos candidatos fluem até os públicos, e dados que contrariem essa lógica são retidos, minimizados, distorcidos.
Escolhas editoriais
No Brasil, são poucas as empresas de comunicação que expressam seus apoios, seja por razões econômicas (para evitar colisões com anunciantes) ou políticas (para não se indispor com grupos locais). As justificativas usadas são de que não querem interferir no processo eleitoral ou que não têm favoritos. Será mesmo? Falta ousadia, sobra cinismo.
O fato é que a falsa imparcialidade é um vício maior que o enviesamento, pois ela se rege por uma lógica perversa, de enganação e de mentira, o que é avesso moralmente à finalidade do jornalismo: ser fiel aos fatos. Declarar apoio é uma decisão empresarial e editorial, e quando levada a cabo deve garantir que a preferência não comprometa o equilíbrio da cobertura informativa. Não é fácil, é verdade, mas quem disse que jornalismo se faz com um pé nas costas?
Mas se optar de forma transparente é complicado, que tal se os veículos assumissem uma postura menos alinhada aos candidatos e mais próxima da perspectiva do eleitor? Em outras palavras: que tal um ombudsman das eleições, alguém que fosse além da apresentação das promessas e pudesse contradizer os políticos? Pessoalmente, gostaria de ver essa figura na propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Já pensou em ter o tempo dividido entre situação, oposição e um moderador que pudesse colocar os pingos nos is? A Justiça Eleitoral poderia prestar esse serviço, mas nem adianta alimentar esse desejo: se nem na urna eletrônica há uma tecla para anular o voto…
Se a Justiça Eleitoral não entra nessa bola dividida, a mídia poderia assumir essa função. É bem verdade que neste pleito algumas iniciativas transcendem o leilão das propostas. A Folha de S.Paulo tem um “Promessômetro” e um“Mentirômetro”, O Globo criou o blog ”Preto no Branco“, e existem outros empreendimentos neste sentido. Neles, os meios de comunicação adotam uma postura cética, crítica, exigente. Assumem um lugar de cobrança, de desconfiança e descrédito, distinta do niilismo. Pressionam os candidatos, testam suas capacidades de resposta aos questionamentos. Por que não radicalizar essa disposição?
Se um ombudsman de imprensa atua como defensor dos interesses do leitor, se cobra justificativa para certas escolhas editoriais, por que a mídia não poderia funcionar como esse compromisso? Atuaria de forma enviesada, é verdade, mas tomando partido do eleitor, mantendo uma preciosa distância dos comitês eleitorais. O que é necessário para assumir esse risco? Coragem. Quem está disposto a corrê-lo? Esta é a questão que não para de pulsar.
******
Rogério Christofoletti é jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS