Os comentários dos leitores na rede indicam muitas vezes a intensidade dos sentimentos mobilizados por um artigo de opinião, uma notícia, ou a simples menção a um nome ou a um evento. Eles são não apenas um índice interessante para se mensurar a temperatura emocional de parcelas significativas dos leitores, mas também uma forma nada desprezível de documentação histórica da atualidade. Por isso, é bastante lamentável observar, o que tememos que vire tendência, o portal G1 eliminar o espaço de comentários ao longo deste período eleitoral. É, no mínimo, um retrocesso a suspensão unilateral e autoritária de uma prática que marca as possibilidades interativas da comunicação na rede.
Mesmo se, e talvez principalmente, quando as manifestações de muitos leitores mostram sintomas de intolerância e ódio, a simples possibilidade de captar e mensurar suas inclinações é uma aquisição da imprensa eletrônica que não caberia descartar. Na conjuntura eleitoral, uma boa imagem dos segmentos mais intolerantes da classe média brasileira está sendo traçada através dos índices alarmantes de crescimento dos atos de racismo, homofobia, xenofobia, neonazismo e intolerância religiosa na rede. Segundo dados de matéria produzida para a Folha por Bruno Romani, esses atos cresceram 84% na atual conjuntura, o que certamente podemos tomar como termômetro da exasperação da classe média.
Comparou-se o período entre 1° de julho e 6 de outubro de 2014 com o mesmo período em 2013. A íntima relação dos sentimentos e práticas que se caracterizam como crimes de ódio com o período eleitoral mostra-se muito claramente em seus espasmos de crescimento exponencial logo após eventos marcantes da campanha, como o debate da Record e a divulgação dos resultados do primeiro turno.
Uma avaliação crítica equilibrada e reflexiva sobre a atual onda de violência, e suas consequências políticas, apareceu num post do blog de Laura Capriglione com o título “Ódio ao PT está matando a candidatura de Aécio Neves“. Paradoxalmente, o texto, que traz um alerta muito claro sobre os efeitos debilitantes do ódio político, foi compreendido pela parcela raivosa que hoje esquadrinha a internet em busca de sangue virtual como uma provocação. A ler séries escolhidas ao acaso do número recorde de comentários recebidos pelo post, mais de 4 mil, praticamente não se encontram brechas.
Arma da desqualificação
Veja-se uma pequena amostra de 10 comentários mais populares no momento, que são mais populares justamente por refletirem a tendência dominante dos comentários:
Os comentários, certamente, não são uma amostra da posição da maioria dos leitores. Tanto é assim que o texto aparece agora (dia 22 de outubro às 20:35hs), com 4.167 comentários, a grande maioria negativos, mas exibe 17.106 compartilhamentos no Facebook e foi retuitado 1.474 vezes. Ao que tudo leva a crer, portanto, os comentários indicam pouco sobre a apreciação positiva do post, muito maior que as demonstrações negativas, mas dizem muito sobre um modo de se subtrair aos efeitos da crítica certeira: inverter de forma mecânica os polos de agressor e agredido. Um comentário merece ser destacado como uma forma quase lapidar desse procedimento:
Criticar a sandice do ódio, e pior ainda, fazer isso com uma argumentação inteligente, bem fundamentada e equilibrada, como fez Capriglione, é, em primeiro lugar, classificado como efeito da loucura ou das drogas. Em segundo lugar, nota-se que, apesar de ter avançado o sinal vermelho do racismo, da homofobia, do enorme preconceito com o Nordeste e os nordestinos etc., um setor considerável da classe média opta por ver-se a si mesmo como vítima do ódio. Esta artimanha permite empunhar, como seu último “argumento”, a arma da desqualificação profissional da jornalista. Essa forma de ataque, sobretudo por seu caráter de assédio moral, deveria receber uma adjetivação própria, uma vez que serve de ultima ratio de um jogo de violência simbólica.
Avanços e retrocessos
Considerados como manifestação do público leitor atual, os comentários parecem servir a uma variedade de funções que ainda caberia bem delinear. Nos blogs, contudo, que abrigam boa parte da opinião política, percebe-se um estreitamento, quase uma especialização do comentário como contraponto ofensivo, que vai desde a mera descarga agressiva mais virulenta até a recuperação das funções de catarse numa relação que guarda traços da confissão. Ainda que anônima, como ocorre em muitos casos (mas, abstraídas as responsabilidades jurídicas, o nome tem um papel cada vez menor a representar na rede), toda vez que um site permite que se recupere o histórico de comentários de um mesmo leitor, deparamos quase que com um diário eletrônico de seus interesses, atitudes e inclinações. Ou seja, o leitor inscreve-se no que escreve, embora pelo anonimato apague as marcas mais salientes de autoria. E não é pouco o que se pode ler em sua inscrição.
No caso particular do ódio político, de que Laura Capriglione escrutinou pacientemente, a onda de ira que veio chocar-se contra o seu post indica bem as estratégias recorrentes, mas que ainda mal começamos a compreender, que são empregadas pelos disseminadores de ódio na rede: a inversão de responsabilidades, a tática de fazer-se de ofendido, a desqualificação de toda reflexão, o ódio a quem indica as consequências nefastas do ódio, a desqualificação profissional.
O que talvez seja mais de se temer é que, cristalizada nessa eleição pela escalada de provocações, a contenda que não terminará agora, entre o PT e o PSDB, ganhe cada vez mais a marca bipolar das torcidas rivais de futebol sempre sujeitas aos surtos agressivos. Não é preciso dizer que, estabelecido esse quadro, regressaremos quase automaticamente aos ajustes de contas e aos crimes eleitorais tão comuns na República Velha. Não devemos esquecer que, em geral, a história brasileira tem sido pobre em avanços, mas muito rica em retrocessos, às vezes dramáticos. Ao menos numa das suas formas, a dos crimes de ódio, a violência parece estar de volta.
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Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, professor universitário e escritor