Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O partido da mídia

O Brasil está dividido em dois partidos políticos: o partido da mídia e os outros. Nada separa tanto a sociedade brasileira hoje quanto a imprensa. Ela se transformou em um partido político autônomo que se dá o direito de intervir diretamente na política – especialmente em períodos eleitorais – de acordo com uma ideologia radical conservadora. Ela é um ator político ativo, tanto na formulação de um pensamento conservador como na defesa dos interesses liberais.

A mídia tornou-se um partido com independência política porque se autonomizou financeiramente, possui metas ideológicas explícitas, planos de ação de curto prazo conforme a conjuntura, e um projeto ideológico de longo prazo: o acúmulo do maior capital político (poder) possível. Esse projeto está em curso e se consolidando conforme os desejos dos proprietários da mídia.

Nenhum outro grupo detém hoje tamanha autonomia de ação, e tanto poder de intervenção no debate público. A mídia brasileira já foi um esboço de espaço público, limitado é verdade, mas onde foi possível alguns grupos debaterem as grandes questões nacionais. Essa pretensão é coisa do passado, a mídia jornalística abandonou-a. Ela não é mais um espaço democrático de debates, e sim um ator social com posição definida e uma ação política ostensiva. É uma organização em rede que interfere na política de maneira direta, dirige a opinião pública e ameaça seus adversários com a arrogância de um poder para o qual não foi eleita. Faz isso descaradamente “em nome do povo”, pretendendo obter credibilidade. Se essa credibilidade não é repassada pela sociedade, não importa: a mídia fingirá que a detém, em nome da democracia.

Opção assumida

Graças à visibilidade pública de seus agentes, a mídia jornalística tornou-se um ator político poderoso. Ela detém o monopólio da voz, detém o poder de selecionar, suprimir e orientar a informação. O público só toma conhecimento daquilo que a mídia quer divulgar. E esconde deliberadamente os temas que não quer tornar público. Pensamentos diferentes só são permitidos até certos limites, e se algum grupo ultrapassar esses limites é imediatamente ridiculizado nas páginas e telas. Eventos e escândalos políticos são forjados, requentados ou amplificados conforme a conveniência de ocasião.

Todos os outros poderes tornaram-se frágeis diante da mídia. Ela é mais poderosa do que o Poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Ninguém ousa desafiá-la. Todo político a teme, toda autoridade pública – do presidente ao prefeito municipal – se submete, todo juiz pondera primeiro a repercussão na mídia de suas decisões. E todos procuram, a todo custo, conquistar as graças dos repórteres e veículos a fim de obter maior visibilidade pública. Mas a mídia é hábil, faz um jogo sórdido, só permite a certos atores “aparecerem bem na fotografia” porque ela detém o poder de decidir, em última instância. Quando quer, age como o escorpião, destrói mortalmente, sem piedade, seus antigos aliados. A mídia não tem amigos, só aliados de conveniência.

Nas democracias liberais a mídia jornalística se proclamou independente dos partidos políticos. Proclamou-se publicamente independente, ela se autoqualifica como neutra em relação aos poderes, capacitando-se a exercer o seu papel crítico de maneira imparcial. Assim, busca credenciar-se como porta-voz legítimo da sociedade. Não é o que ocorre no Brasil. Na última década, a mídia jornalística assumiu determinada posição política e adquiriu, cada vez mais, um ponto de vista conservador. Tanto em seus próprios editoriais, onde manifesta claramente sua posição liberal, quanto disfarçadamente nas coberturas jornalísticas.

Nos período pré-eleitorais, a posição política dos jornais e telejornais torna-se mais explícita quando percebem alguma ameaça à sua ideologia. Na eleição que se finda, a posição da maioria dos veículos se radicalizou a tal ponto que eles aderiram incondicionalmente ao pensamento conservador e passaram a utilizar ostensivamente o noticiário com o objetivo de influenciar os eleitores. Se nunca houve imparcialidade no campo do jornalismo, agora a opção é assumida: ou se está ao lado da mídia ou do outro, o adversário a ser massacrado.

Na prática

Nas duas últimas décadas, a mídia desqualificou implacavelmente a atividade político-partidária. Não faltaram reportagens e escândalos infamando partidos, parlamentares, juízes e autoridades públicas. Claro, os políticos mais próximos foram mais poupados. É verdade que nossas autoridades deram o combustível necessário. Mas, interessa aqui se dar conta que essa ação pública foi uma prática política orientada para desqualificar o campo político e fortalecer o campo da mídia a fim de se obter legitimidade aos olhos da sociedade como a guardiã única dos interesses sociais.

A imoralidade dos outros deve ser pública, mas os negócios sujos do partido da mídia e seus parceiros são omitidos e jogados para debaixo do tapete. Posa-se de bom mocinho, de herói de uma pérfida e hipócrita moral pública.

A mídia brasileira não é mais aliada a partidos políticos conservadores, não se associa a certos segmentos políticos, não pratica o paralelismo político. Ela é o próprio partido, está organizada como partido, age como partido, detém uma autonomia própria maior do que qualquer partido, Parlamento, Executivo ou Judiciário. É a mídia que elabora as doutrinas dominantes, que formula as estratégias, que orienta seus correligionários. Os políticos é que aderem a ela – que orienta a ação política, seus argumentos e seus candidatos.

Na prática, a mídia jornalística é um partido político, só não vê quem não quer.

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Luiz G. Motta é jornalista, professor titular da Universidade de Brasília