Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As pontes de Dilma

Na tradução que Millôr Fernandes fez da tragédia Antígona, de Sófocles, há uma boa formulação para entendermos o momento presente. “Em mim só manda um rei: o que constrói pontes e destrói muralhas”, proclama o coro, já ao final da peça.

(A combinação das palavras governante e ponte não tem dado bons frutos no Brasil. Sendo assim, antes de qualquer outra consideração é providencial fazer um alerta preliminar. Atenção, ocupantes de cargos públicos, Sófocles, ao falar em pontes, não recomenda aos governantes que armem licitação fajuta para contratar uma empreiteira que se incumbirá de estender viadutos superfaturados por aí. O termo ponte, no caso, é meramente metafórico, por favor. Embora este alerta vá soar como deboche a ouvidos mais sabujos, ele é dramaticamente, ou mesmo tragicamente, necessário. Repetindo: as pontes de Sófocles são metafóricas. Nada que ver com construção civil. Elas se referem à mão estendida para o entendimento.)

Em seu discurso de vitória, na noite de domingo, Dilma Rousseff referiu-se às mesmas pontes metafóricas: “Em lugar de ampliar divergências, de criar um fosso, tenho forte esperança que a energia mobilizadora tenha preparado um bom terreno para a construção e pontes”.

Lendo suas palavras no teleprompter, a presidente lançou um chamamento à unidade nacional, ainda que tenha tentado minimizar a gravidade do momento com uma negativa sutil e estranha. O chamamento: “Conclamo, sem exceção, a todas as brasileiras e todos os brasileiros para nos unirmos em favor do futuro da nossa pátria, do nosso país e de nosso povo”. A negativa: “Não acredito, sinceramente, que essas eleições tenham dividido o País ao meio. Entendo, sim, que elas mobilizaram ideias e emoções às vezes contraditórias, mas unidas por sentimentos comuns, a busca por um futuro melhor para o País”.

Deixemos a negativa na conta dos eufemismos ou das mentiras piedosas. É claro que existe um fosso, uma muralha, um “Muro de Berlim” imaginário cindindo ao meio o povo brasileiro. A presidente sabe disso muito bem. Se nada se dividiu, por que ela perderia tempo com um apelo de reconciliação? O País está dividido, sim, e não se trata de uma clivagem “saudável” ou “produtiva”. A polarização gerada pela campanha não se resume ao despertar daqueles que sempre silenciaram (de um lado ou de outro) e agora resolveram pôr a boca no mundo. Existe ódio no ar. Impaciência. Irritabilidade. Intolerância. Ultrajes e ofensas as mais vis estouram nas redes sociais. Isso não é apenas dissenso ou divergência, mas um processo desagregador.

De um lado, em núcleos de apoiadores do PSDB, despontam discursos violentos (de preconceito de classe) que agridem nordestinos, insultam os beneficiários do Bolsa Família como se fossem parasitas inúteis e achincalham os pobres. Do outro, o lado que cerrou fileiras com Dilma, explode o fanatismo que demoniza os mais ricos, celebra o autoritarismo e estimula o empastelamento (material ou virtual) de órgãos de imprensa acusados de defender o capital ou o que quer que seja (o “establishment”, o “status quo”, os “tucanos”, e por aí vai). A agressividade nesse nível torna inviável o diálogo. Se a polarização descambar em guerra de infâmias, o País vai se desunir, para prejuízo de todos.

Pergunta necessária

Diante disso, Dilma tem toda a razão em se declarar disposta a conversar com todos os lados. “Esta presidente está disposta ao diálogo, e esse é meu primeiro compromisso no segundo mandato: o diálogo”, disse.

Apresentando-se como a presidente do diálogo, ela começou a falar, enfim, no diapasão que se espera dos estadistas. Deu boas entrevistas aos telejornais da Record, da Globo (na segunda, dia 27) e do SBT (na terça, anteontem). Afirmou e reafirmou a necessidade da reforma política e do combate à corrupção. Condenou reiteradamente os desvios que vêm sendo investigados na Petrobrás (não sobrará “pedra sobre pedra”, garante, “doa a quem doer”), num tom muito diferente do que tentava pôr panos quentes em investigações pretéritas (“não podemos prejulgar ninguém” etc.). O tempo todo chamou o Brasil a se unir.

Por descuido ou arrogância, porém, Dilma não citou o nome de Aécio Neves nem no discurso do dia 26 nem na entrevista que deu ao Jornal Nacional no dia 27. Ficou claríssimo que, também para ela, a interlocução civilizada não será fácil. Nesse ponto Aécio saiu-se melhor. “Cumprimentei agora há pouco, por telefone, a presidente reeleita e desejei a ela sucesso na condução de seu próximo governo”, contou ele em seu telegráfico pronunciamento na noite de domingo. “E ressaltei: considero que a maior de todas as prioridades deve ser unir o Brasil em torno de um projeto honrado que dignifique a todos os brasileiros.” Aécio fez votos de êxito, e nisso acertou, mas deveria ter dito com clareza que assume a sua responsabilidade na “maior de todas as prioridades”, a prioridade de unir o Brasil. Isso ele não disse. Sinal de que, também para ele, a conversa não será indolor.

Somente na terça à noite, e somente por ter sido provocada pelo jornalista Kennedy Alencar, que a entrevistava para o SBT, a presidente mencionou os nomes de Aécio e Marina Silva. Já era tempo.

“Presidente, a senhora pretende conversar com o Aécio Neves e com a Marina Silva sobre uma reforma política?”

“Olha, Kennedy, sem a menor sombra de dúvida. Eu estou aberta ao diálogo. Eu acho que a palavra correta, num início de um governo, é se abrir ao diálogo com todos os setores. O Aécio, a Marina…”

“A senhora vai estender a mão para eles?”

“ É óbvio que vou.”

“Vai chamá-los para uma conversa.”

“Sim, posso chamá-los, sim.”

Outra vez ecoou o texto de Antígona: “É necessário, que a gente crie no Brasil pontes”.

Ainda que só tenha pronunciado o nome dos adversários após uma pergunta do repórter, melhor assim. O Brasil precisa de pontes. Tomara que a presidente e a oposição consigam construí-las.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP