Democracia foi uma das palavras mais citadas no embate que se viu nas redes sociais depois do segundo turno das eleições. Foi usada principalmente por aqueles que, satisfeitos com o resultado do pleito, pediam que os insatisfeitos respeitassem a escolha da maioria. Cabe lembrar que, idealmente, democracia vai além da vontade da maioria porque traz em seu princípio a ideia de bem comum.
Sob esse prisma, a democracia surgiria da ação em prol do conjunto da população. Não viria da soma de escolhas individuais, em uma espécie de ditadura da maioria. Pergunta: é democrática a escolha feita pela maioria com base em interesses particulares? Se universitários fossem a maioria da população e votassem em x para ganhar uma bolsa de estudos no exterior, estariam agindo democraticamente? Ou haveria democracia se votassem em x por acreditar que promoveria o acesso de todos à educação?
Sobretudo pelas restrições às liberdades, ditadura se converteu em um termo que causa calafrios. Mas isso basta para coroar os rumos tomados pela democracia? Para o cientista político Giovanni Sartori, democracia parece ter virado “uma palavra vazia de conteúdo” embora continue sendo “universalmente honorífica e mágica”. Segundo o italiano, autor de Teoria de la democracia (2008), a política moderna virou um “campo de embate entre personagens construídos artificialmente por meio de campanhas de marketing nos meios de comunicação de massa, em vez de luta entre partidos ou projetos de sociedade”.
Nesse contexto, observam Héctor Ricardo Leis (1943-2014) e Selvino Assmann em Aproximações entre a ditadura e a democracia (2010), parece difícil definir democracia até por sua oposição porque ditadura se consolidou como um termo proibido. “Como ninguém quer ser confundido com um defensor da ditadura, hoje são poucos os que sequer ousam pensá-la”, escrevem, respectivamente, o ex-professor de Ciência Política e o professor de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Eles reforçam que “o pensar nunca está associado a uma tentativa de justificar determinado rumo político concreto. O pensamento apenas faz pensar”.
O bem comum
Democracia e ditadura são termos opostos, mas a ideia de bem comum pode aproximar um do outro. Além do mais, a história mostra que “nem sempre a democracia é boa assim como nem sempre a ditadura é má”, como observam Leis e Assmann.
A democracia pode ser má quando ela não tem inimigos e quando não aponta quem pode ser responsabilizado pelos fracassos. “A tradição define o poder tirânico como o poder arbitrário, o que significava um regime que não devia prestação de contas e não era responsável perante quem quer que fosse. O mesmo vale para o regime burocrático de ninguém, ainda que por uma razão totalmente diferente. Em uma burocracia há muitas pessoas que podem pedir prestação de contas, mas não há ninguém para fazê-lo, porque “ninguém pode responsabilizar-se”, diz a pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975) emA promessa da política (2008).
A ditadura pode não ser má no estado de exceção, quando algo grave ameaça a nação. Nesses casos surge o que o filósofo alemão Carl Schmitt (1888-1985) chama de soberano, aquele “que decide no estado de exceção”. “Imagina-se uma situação de guerra ou de luta civil por conta de escassez de recursos. Na Roma Antiga entendia-se que o governo de uma pessoa era mais apto para enfrentar essas anomalias. No presente, essa interpretação parece impossível e indesejável, condenando-se a comunidade política a se esgotar na luta interna enquanto o mal se alastra (…). O mundo da democracia contemporânea foi imaginado e construído, após a Segunda Guerra Mundial, para um sistema político de Estados-nações que se supunha que teria condições de garantir a governabilidade sob qualquer circunstância. Mas o século 21, devido a uma globalização econômica escassamente acompanhada pela política e frente ao surgimento de riscos ambientais e tecnológicos globais, pode vir a evidenciar que esse não é o caso”, observam Leis e Assmann.
A respeito do poder tirânico, Hannah Arendt também escreveu: “Os gregos sabiam por experiência própria que um tirano sensato (o que hoje chamaríamos de um déspota esclarecido) era muito vantajoso para o bem-estar da cidade e o florescimento de suas artes materiais e intelectuais. Mas o tirano trazia consigo o fim da liberdade.”
Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), em uma época muito distante da nossa, pregava uma espécie de meio termo. Ele, como lembram Leis e Assmann, “recomendava evitar tanto os excessos da autoridade, que levam à tirania, como os da liberdade, que pervertem a democracia.” O filósofo acreditava que “uma forma mista entre as formas ditatoriais e democráticas poderia atender melhor às necessidades de uma boa governabilidade que qualquer forma pura de governo”. Nesse último ponto, talvez coubesse citar Nelson Rodrigues, para quem “toda unanimidade é burra”.
Referência
LEIS, Héctor Ricardo e ASSMANN, Selvino. “Aproximações entre a ditadura e a democracia”. In: Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, vol. 46, nº 2, p. 116-120.
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Jeferson Bertolini é repórter e doutorando em Ciências Humanas