Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Nada de novo no Tucanistão

Ao se repassar Câmara Clara, o magnífico livro de Roland Barthes sobre fotografia, permanece simples e atual o seu método particular de leitura de fotos. Ele propõe o studium (as circunstâncias históricas ou culturais em torno da imagem) e o punctum (o detalhe que captura o olhar do observador) como pressupostos analíticos para se apreender o sentido geral da imagem.

Esse procedimento nos ocorre agora propósito do dia seguinte ao do resultado do segundo turno eleitoral (segunda-feira, 27/10), quando O Globo publicou em tamanho grande uma foto da presidente Dilma Rousseff, então jovem e sentada à frente de um tribunal militar que viria a condená-la à prisão. É uma foto já bastante conhecida por circular em redes sociais. Impressiona pela postura muito ereta da militante que tinha sido submetida a torturas e por um semblante em que transparecem altivez e dignidade.

Não é uma face de desafio, ela está simplesmente ali, sem sinais de medo. É flagrante o contraste com a expressão convulsiva de pessoas que, nas redes sociais, tresandam ódio. Tal como aquela mulher que, no Facebook, apostrofava enfurecida os “pobres”, indigitados como “eleitores de Dilma”, proclamando aos gritos que era rica e que a família tinha casa em Orlando.

O punctum da imagem, porém, é a tentativa dos juízes de esconderem os rostos com as mãos. O olhar do observador não pode deixar de deter-se sobre os homens fardados (e não togados) que subtraem os rostos à lente do fotógrafo certamente franqueado pelo sistema, porque o gesto parece incompatível com a posição de poder de quem se sente autorizado a julgar e condenar. De uma consulta ao studium, poderia resultar a informação de que os membros do tribunal entravam no “armário” por temor a represálias, embora fosse afinal de contas um tribunal supostamente legítimo e, ainda por cima, no auge do período ditatorial.

Ferida narcísica

Décadas depois, entretanto, o punctum remete ao temor ao próprio ato, isto é, à vergonha de simplesmente estar ali no exercício de um puro arbítrio, em que se coonestava implicitamente a barbárie da tortura. Em termos gerais, não era um gesto exclusivo dos militares, uma vez que lideranças civis, seus cúmplices nos horrores da repressão, costumavam também levar (metaforicamente) as mãos aos rostos para encobrir com as máscaras do democratismo a violência física e institucional dirigida aos opositores.

Por que teria o jornalão editado precisamente essa foto?

Por maior que seja o risco teórico de buscar motivações psicanalíticas para uma empresa, é tentador associar ao subconsciente profissional de uma corporação jornalística a presença latente de deslocamentos de sentido que às vezes transparecem na composição de manchetes ou na seleção de imagens. Não é uma tentativa absurda: ao lado de seu empenho profissional, os jornalistas constituem-se também em “grupo de imaginação”, perpassado por um imaginário de história e de cultura.

O sistema midiático não escondeu a sua tomada de posição, seja em manchetes, fotos, noticiário e colunas, a favor do candidato oposicionista. Com poucas exceções, os colunistas, por exemplo, desdobravam-se no discurso do golpe baixo, o mesmo que predominava nas redes sociais, desencavando a retórica do bathos (rebaixamento cultural) para dar o tom da disputa presidencial.

A insinuação de um “racha” nacional comparecia tanto nas redes quanto na imprensa hegemônica. Em seu editorial do dia 28/10, com a vitória de Dilma já proclamada, O Globo insistia na divisão do país em dois grandes blocos, “grosso modo, o Norte-Nordeste perfilado ao PT, o Sudeste/Sul/Centro-Oeste com a oposição”.

E o diagnóstico preconceituoso:

“Fica evidente que o país que produz e paga impostos – pesados, ressalte-se – deseja o PT longe do Planalto, enquanto aquele Brasil cuja população se beneficia dos lautos programas sociais – não só o Bolsa Família –, financiados pelos impostos, não quer mudanças em Brasília, por óbvias razões”.

O editorial passa por cima da pequena diferença de votos entre Sudeste e Norte-Nordeste na reeleição da presidente para ressaltar “a avassaladora antipetização do Estado de São Paulo, o mais populoso e rico da Federação”. Passa também por cima do fato de que a presidente reeleita teve votação expressiva em regiões onde não predomina o Bolsa Família.

A se levar a sério esse tipo de argumentação, não há como o senso comum deixar de entender que não se trabalha nem se paga impostos no Norte-Nordeste: “A eleição deixa o país dividido entre o bloco dos que produzem e pagam impostos e o dos beneficiários de programas sociais”. A divisão não é realmente geográfica, já que “Nordeste” designa uma condição étnica e social incrustada no próprio Sudeste. Minas Gerais, “contração” metafórica do país inteiro, tem o seu “Nordeste” e o seu “Sudeste”. Nordestino, entretanto, é sempre o Outro.

A divisão de classes e os preconceitos étnicos sempre existiram no interior de uma sociedade nacional que, perpetuando a forma social escravagista, percebe qualquer alteração na superfície do sentido como uma ferida narcísica. O ódio e a violência, como bem o sabe a vulgata psicanalítica, são expressões da fúria narcísica, individual ou de grupo.

Tudo como dantes

A foto de Dilma Rousseff no tribunal pode ter sido republicada em grande estilo para se mostrar, por pressão inconsciente, que hoje já se pode tirar a mão do rosto. A rede eletrônica, ao abrigo da distância física, encoraja as atitudes no plano do imaginário. Nesse “aí”, o país seria dois: o Norte-Nordeste problemático e o outro um “Tucanistão” rico, mas seco de sentimentos nacionais e, agora, de água.

Não se pode excluir absolutamente a hipótese de que esse imaginário delirante seja apenas uma face inflamada da normalidade democrática, uma frustração que se exterioriza, conforme o jargão das redes sociais, como um facemelt. Para os não-iniciados, isto é a descompostura ou o “mico” pago por alguém que se expõe demais na rede, como a mulher decidida a ir embora para Orlando. A versão impressa do facemelt pode ser encontrada em frases de políticos de grande expressão nacional, ressentidos com a derrota de seu partido.

Mas talvez também se deva voltar à imagem dos rostos encobertos dos juízes militares na foto para se dar conta do fenômeno mais geral de uma “direita descomplexada”, isto é, aquela que tira as mãos do rosto e exibe sem pudores a sua identidade de classe. Isso sempre existiu, a diferença de agora é a máscara benigna fora da face. A casa em Orlando pode ser real, mas a mudança para lá é imaginária. A República do
Tucanistão é mais segura, visto que aqui, com presidente novo ou velho, tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes.

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro