Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Está na hora da mídia prestar contas

Um simples cidadão brasileiro, pessoa física, quando deve e não paga a bancos – porque não quer mas principalmente porque não pode – é , em geral, executado judicialmente, levando-o até mesmo à perda de bens que, em geral, vão a leilão. Um simples cidadão brasileiro, quando pobre e desvia dinheiro, é preso e, em geral, vai para a cadeia.

Há processos – e não são poucos – de pequenos roubos e de pequenas penas em que cidadãos brasileiros, em geral pobres, vão sem muita discussão para a cadeia. As penas, muitas delas, vencem e eles continuam lá, às vezes por muito tempo após terem o direito à liberdade. No Brasil, a investigação e punição recaem, em geral, em quem tem pouca chance de defesa.

Por outro lado, um governo, quando tem entre seus integrantes pessoas que desviam verbas, pode – e deve – ser investigado. É o que tem ocorrido nos últimos anos. Nunca antes houve tanta investigação de organismos do Estado, promovido pelos próprios entes do Estado. É um espaço de liberdade de investigação e de ação que não se viu com tanta intensidade em governos da era Fernando Henrique Cardoso ou do regime militar. Com a falta de liberdade deste, ficou muito difícil para a imprensa investigar, por impedimento de liberdade; ou para os organismos do Estado investigarem, porque participavam da censura à imprensa e dos silenciamentos ou benefícios.

Por fora

Até que ponto a processo massivo de asfaltamento das estradas brasileiras, iniciado sobretudo na era Juscelino Kubistschek, mas intensificado na ditadura militar (1964-1985), com o respectivo sucateamento das ferrovias, ajudou empreiteiras, fábricas de pneus e outras tantas empresas nacionais ou internacionais? Onde está a Transamazônica da ditadura militar e seu bilionário desperdício de dinheiro público? Os ganhos de serviços públicos com a Itaipu Binacional foram inegáveis, mas quantas obras e sub-obras – tal como na Copa do Mundo – foram superfaturadas? Onde estava o jornalismo, a mídia e os empresários? Apoiando o golpe? Censurados?

No cenário atual, em que se pretende reduzir a Petrobras a interesses meramente privados, para ganhos posteriores com uma possível privatização, e onde há “escândalos” por toda a parte, muitos deles patrocinados e exagerados pela imprensa – em alguns casos com falta de provas, fabricação de fontes, ineficácia de apuração e angulação mal intencionada –, tal como sucessivamente faz a revista Veja (que usa o nome de jornalística só de fachada, uma espécie de laranja dos interesses privados do país), está mais do que na hora de a apuração envolver todos os envolvidos, e com o nome de quem efetivamente está se beneficiando, seja da corrupção, seja do escândalo montado para exagerar na corrupção.

Como instituição do Estado – submetida à Constituição e à sua legislação derivada –, a mídia precisa prestar contas de sua atuação, de seus negócios e de suas benesses. E, como talvez não queira, cabe ao Estado fazer com que ela cumpra sua finalidade constitucional. Se ela reclama que precisa de liberdade plena, tal liberdade não é a do interesse privado, é a do interesse público. E se ela engana o público, o mínimo que se espera é uma regulação econômica que permita ao público ser mais bem informado com outras mídias, outras vozes, outras fontes, outras apurações e outros jornalistas.

Qualquer mídia continuará a dizer o que bem entende – respondendo, como prevê a Constituição, pelos excessos na forma da lei, como em qualquer país das democracias ocidentais. Mas ao Estado cabe impulsionar políticas que permitam espaço maior de liberdade e de controvérsia, essenciais à democracia. Assim, uma legislação de regulação econômica que invista na controvérsia no espaço público, massivamente, fortalece a democracia.

Mais que isso, cabe ao Estado decidir o destino de suas verbas, já que há um volume destinado à publicização de atos, como em qualquer país. Aqueles que foram eleitos, e que representam a vontade da maioria, podem decidir investir mais em Educação e Saúde, por exemplo, e dar menos dinheiro – que sai do meu bolso, do seu bolso, da Educação e da Saúde – a fundo perdido para a mídia. E, sobretudo, quando tais mídias, que envolvem redes televisivas, como a Globo, sonegam impostos, relutam em cumprir condenações judiciais que exigem o pagamento de impostos, embora tais emissoras invistam em denúncias prolongadas contra quem sonega e não paga.

Mais que isso, cabe tanto a organismos de Estado, como a Polícia Federal, como à mídia, investigar sonegação, desvios de verbas e corrupção em geral. Mas quem investiga a propina na mídia, o dinheiro pago por fora a jornalistas, os acordos de publicidade em troca de favores? Está mais do que na hora investigar a mídia e sua corrupção. Não sendo ela, hegemonicamente a fazer isso, tal papel cabe ao Estado, representando por quem governa e foi eleito para isso; e às mídias honestas, atuais ou que venham a ser criadas.

Visibilidade pública

Se é o momento de passar a limpo a corrupção, o momento envolve todos os atores e está na hora de ir atrás dos corruptores, mostrando nome, sobrenome e endereço. E com continuidade e resultados.

Se há crimes de lesa-humanidade, como tortura e assassinatos políticos, eles não devem ficar impunes nem prescrever. Nem os crimes do nazismo da Segunda Guerra Mundial estão prescritos. Se assim fosse, os carrascos nazistas não estariam, até hoje, sendo buscados e presos. Hoje, claro, é uma raridade, por causa do tempo que passou e da idade dos carrascos, quase todos mortos.

Os que bradam pela volta da ditadura – com o espaço de liberdade nas ruas e na mídia que a ditadura militar não daria a eles – precisariam mirar um pouco para a história. Houve um tempo de intolerância, de corrupção, de cassações, de desaparecimentos, de torturas e de assassinatos. Tal tempo não permitia nenhuma investigação com a liberdade que há hoje.

Os que bradam pelo “separatismo” entre regiões e estados precisariam ver que, no caso, seria necessário separar famílias com pensamentos e votos diferentes, irmãos que votam diferentemente, e pais e filhos com posições diferentes. Teria até mesmo de haver uma separação física entre partes de uma cidade que deu voto para um ou para outro.

É a estupidez humana em sua mais plena luminosidade, afora o intolerável preconceito, desconhecimento histórico e os argumentos rasteiros, tão estereotipados, tão medíocres e tão contundentemente falsos.

Passado o lamaçal que levou Getúlio Vargas ao suicídio (1954); passada a tentativa de impedir o vice-presidente João Goulart eleito pelo povo a tomar posse (1961); passado o golpe militar (1964) que derrubou um governo eleito popularmente e que cassou muita gente eleita e que pensava livremente e que perseguiu, torturou e assassinou; passada a tentativa de golpe da mídia nas eleições presidenciais de 2014, parece não haver muito tempo mais para reagir a uma nova tentativa de golpe midiático-empresarial que se vislumbra para 2018.

Parece que este é o momento de uma regulação econômica da mídia – como existe em países democráticos – e da investigação incessante da corrupção empresarial, dos corruptores e dos benefícios que recaem para as empresas jornalísticas. E com investigações sucessivas, prolongadas, com resultados e com visibilidade pública.

Quem dará visibilidade pública a tais investigações? As redes sociais ajudam, mas ainda não formam uma grande rede de contraponto à mídia hegemônica, que hoje funciona tentando se sobrepor ao Estado, como se dele não fizesse parte e a ele não devesse prestação de contas. Qualquer democracia exige prestação de contas de quaisquer instituições públicas ou privadas. A mídia não está fora disso.

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Francisco José Castilhos Karam é professor na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS