Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Gestão do mal

O noticiário anda tão nefasto, que tento começar a coar o café antes de abrir o tablet ou pegar o jornal na porta. Este domingo [16/11], não deu outra: dei de cara com mais um refém degolado pelo Estado Islâmico. A quinta vítima é um jovem norte-americano que prestava assistência a refugiados sírios. Previsível como a propaganda dos carrascos, logo veio o adjetivo na reação de um líder ocidental. David Cameron acusou os executores de “depravados.” Ao ordenar os bombardeios na Síria, Obama prometeu erradicar “o mal” dos militantes sunitas. O vice-presidente Joe Biden prometeu perseguir o Estado Islâmico “até as portas do inferno”.

Neste 2014 especialmente prolífico em espetáculos de crueldade, sentimos impotência e perplexidade. Esperamos que as democracias representem alguma forma de proteção civilizatória. Não é preciso se identificar com ideologia ou religião para sentir horror com os raptos e estupros do Boko Haram ou as degolas do Estado Islâmico na Síria. Uma pausa: a Arábia Saudita já degolou 66 prisioneiros este ano, depois de julgamentos amplamente descreditados. É assim que o reino pune seus criminosos mas nosso horror é reservado aos degolados do grupo que quer formar um califado supranacional.

A barbaridade do Estado Islâmico foi articulada em 2006, num livro do pensador islamista Abu Bakr Naji, intitulado A Gestão da Selvageria. O livro defende a administração da selvageria humana e a polarização da população. É importante lembrar que o Estado Islâmico brotou do caos instalado no Iraque. Um caos que foi trazido pela invasão planejada por George W. Bush e apoiada por Tony Blair. Os dois têm em comum a convicção primitiva de que o bem vai triunfar sobre o mal. Saddam Hussein era o mal e isto bastava para ser eliminado, a despeito da realidade de um país com profunda divisão sectária que ele tinha sufocado e “gerido” por mais de três décadas.

Clichês maniqueístas

Nos últimos dias, estamos vendo exemplos do dilema que a sociedade secular e liberal não parece equipada para enfrentar e que insiste em descrever como uma aberração, não a continuação da manifestação humana de perseguir e matar. Vazaram notícias de que Obama reconhece o fracasso de sua campanha militar contra o Estado Islâmico na Síria. O Estado Islâmico só passou a merecer seus epítetos demonizadores quando cruzou a fronteira do Iraque e prometeu tomar o país que nós, contribuintes, pagamos mais de US$ 2 trilhões para desestabilizar. Quando degolava sob a desculpa de combater Bashar Assad, o Saddam Hussein da vez, a urgência não era a mesma, embora a guerra civil na Síria já tenha provocado quase 200 mil mortes. Obama percebe que é impossível “erradicar o mal” do Estado Islâmico e ignorar Assad. Um comentarista de política externa perguntou se fazer algum acordo de cessar fogo com Assad, apesar de “moralmente repugnante”, seria “errado”.

Surgiu no YouTube um vídeo que já foi assistido por mais de três milhões de pessoas. Mostra um menino sírio salvando uma menina do fogo de artilharia. O vídeo é uma encenação dirigida em Malta pelo dinamarquês Lars Klevberg. Ele não se desculpa, considera a falsificação válida para denunciar o sofrimento das crianças sírias.

Tanto os vídeos do Estado Islâmico quanto o vídeo do dinamarquês exploram, com objetivos opostos, nossa atenção fragmentada e nossa reação ao choque. Mas o poder de acompanhar com rapidez sem precedentes a crueldade em qualquer canto do planeta não nos torna mais solidários. Tampouco dispensa líderes da responsabilidade de lidar com grandes problemas por sua gravidade e consequência, não pelo número de hits no YouTube. Simplificar horrores com clichês maniqueístas é sugerir que os carrascos islâmicos são extraterrestres quando são, de fato, uma variação do que pode a humanidade.

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Lúcia Guimarães é colunista doEstado de S.Paulo, em Nova York