Segundo uma hipótese circulante no meio cibernético, a polarização ideológica que se verifica atualmente no Brasil, mas também em diferentes regiões do mundo, teria como causa a internet. Embora o ambiente virtual seja culturalmente da ordem do sensível (e não da argumentação), as emoções individuais neutralizam-se na internet em favor de palavras que, escondendo os rostos e os afetos, podem exacerbar-se.
Para mostrar-se, a polarização acabaria deixando transparecer estados subjetivos individuais e coletivos que, na comunicação interpessoal ou escrita, seriam normalmente recalcados em função de regras civilizadas. Por esta perspectiva se podem explicar alguns episódios chocantes de discriminação ou racismo nas redes sociais.
É possível, entretanto, apontar para outro fenômeno explicativo, que contorna a causalidade única das redes. Vejamos o trecho de um artigo do Fernando Pedreira (na época, membro da elite jornalística do Centro-Sul) publicado há 22 anos:
“Aos poucos, o Brasil se vai tornando mais uma grande república do Caribe; outro México, uma inchada e paciente Jamaica ou Guatemala de dimensões continentais. Vem do Norte uma crescente e irresistível onda que vai lambendo o país, tomando de assalto sua cultura, sua política (…) Estaria nascendo, enfim, um novo Brasil mais brasileiro, vale dizer, mais latrino-americano, cucaracho, caliente, orgulhosa e assumidamente negroide, cubano (…) A mineiridade, o humor quase britânico (civilizadíssimo) de Drummond e Machado já eram (…) Dois Brasil: um país, digamos Cone Sul, mais próximo do Chile, da Argentina ou do Uruguai, e outro caribenho, de cuja existência não nos dávamos claramente conta até ontem, mas que cresce como maré montante…(Jornal do Brasil, 12/5/1993).
Vejam bem, não havia rede social, não se tratava de nenhuma polarização exasperada, mas o artigo estampado num dos dois maiores jornais cariocas da época antecipava a violência preconceituosa (“latrino-americano”, “assumidamente negroide”, “a onda irresistível que vem do Norte” etc.) hoje frequente na internet. Para o colunista, haveria no país uma cultura e uma política únicas, tomadas de assalto por uma síndrome “caribenha”.
Conflitos políticos
Esse artigo é citado em nosso livro Claros e Escuros – identidade, povo e mídia no Brasil (Editora Vozes) como uma amostra significativa do discurso conservador e eurocêntrico persistente na paisagem metropolitana nacional. Lá, ponderamos que “a velha consciência elitista, até agora convicta de seu pertencimento europeu, descobre com horror e medo o que as massas já sabiam há muito tempo, embora só o enunciassem na prática das liturgias cosmológicas, mitos, cânticos, danças, festas, jogos de continuidade simbólica: o país não tem uma, duas, três ou quatro identidades (falsa a tese dos ‘dois Brasil’), mas uma dinâmica múltipla de identificações, evidenciadas pela forte heterogeneidade sociocultural da realidade sul-americana”.
Pode-se fazer aqui uma provisória troca eufemística da palavra “racismo” por outras como “eurocentrismo” ou “eurotropismo”, com o objetivo de traçar raízes mais longevas do fenômeno. Já no século passado, Joaquim Nabuco, publicista do Abolicionismo e uma das referências clássicas para a elite intelectual brasileira, deixava claro em obra autobiográfica que não podia conceber possibilidades de um alto desenvolvimento humanista da paisagem sul-americana. A paisagem humanista, para ele, a sua paisagem, estava no continente europeu: “O espírito humano, que é só um e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico”.
Essa velha consciência alienada ainda deita raízes profundas na forma social brasileira, com intensidade graduada pelo nível das boas maneiras. Dela não escapa a mídia com suas atuais “elites logotécnicas” (articulistas, editorialistas, cronistas, editores), verdadeiros “intelectuais coletivos” (no sentido gramsciano da expressão) dos blocos dirigentes. Não é incomum que muitos deles, nos países que compõem o chamado Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai), abjurem publicamente de sua eventual condição “sul-americana”, desejosos de pertencerem, branca e eurocentricamente, ao Anel Atlântico.
Está em jogo um fenômeno mais amplo do que um mero sentimento discriminatório individual: o embate entre a concepção de povo nacional como demos (com subjetivação racional e supostamente universal) ou como ethnos (com subjetivação moldada por território, religião, particularismos étnicos etc.).
A modernidade ocidental prioriza o povo como demos, portanto, a diferença no interior do ethnos originário (correspondente à divisão das partes da coletividade segundo as posições contraditórias da luta política), procurando fazer crer que esta é uma condição inelutável da universalização da consciência racional. Os fatos “étnicos” pertenceriam exclusivamente aos povos que não acederam plenamente à consciência universal. E esta “verdade”, como toda verdade absoluta, impõe-se pela violência. Daí, os incêndios, os expurgos e os genocídios que consumiram milênios de outras histórias civilizatórias ou de outras histórias étnicas.
Não se escapa do próprio destino étnico, entretanto. Tanto assim que o povo definido como “moderno” pauta-se por uma forma de subjetivação que preserva no limite a consistência coletiva de um ethnos, mas sem reconhecer ou tornar visível a sua natureza. “Étnicos” seriam sempre os outros. Mas na realidade, o velho ethnos está sempre presente (e costuma retornar com força, sob as formas mais sórdidas ou violentas, nos conflitos políticos da migração ou da opressão racial), embora de algum modo distanciado pelas lentes de qualquer outra forma de saber nascida da observação do Outro como remoto ou exótico.
“Estilo de governo”
É imperativo determo-nos um pouco aqui sobre a amplitude da violência, à qual esse brilhante sociólogo que foi Otávio Ianni atribuía grande importância como “um evento heurístico de excepcional significação, porque modifica as suas formas e técnicas de acordo com os movimentos da sociedade”. Num texto intitulado “A cultura da violência”, Ianni mostra como esse fenômeno “explicita nexos insondáveis de subjetividade de agentes e vítimas, em suas ilusões e obsessões (…) revela a alucinação escondida na alienação de indivíduos e coletividades”.
Em toda manifestação, digamos, etnofóbica, transparecem aspectos da violência característica das polarizações ideológicas. São surpreendentes os desdobramentos psicológicos do fenômeno que, ao mesmo tempo em que desnudam facetas recônditas das formas de sociabilidade, entram como elemento importante na cultura política. E novas formas de violência florescem sob a pretensa modernidade da tecnologia e do capital.
Mas na forma em que se vem manifestando, a polarização atual parece ter tudo menos ideologia, pelo menos no sentido de ideias e argumentos contraditórios. Assistimos a uma violência pervasiva, que poreja da internet para escolas (são vários os episódios de professores que se dizem desconfortáveis com a presença de negros e nordestinos), para grupos de entretenimento, para a sociedade global.
E, claro, para as colunas de jornais. Dias atrás, ficamos sabendo por uma delas que “também há brancos” entre os eleitores que garantiram mais quatro anos ao PT. Com uma ressalva: “Mas é só aparência. São todos negros por dentro. Negros como o petróleo viscoso que jorrou nas contas bancárias do PT e aliados nos últimos dez anos” (O Globo, 22/11/2014).
Mais ainda: como ficaria claro “pelo estilo do seu governo” que a presidente reeleita é “devota de Zumbi”, vem a pergunta: “Se o Brasil de Dilma é negro, não seria melhor ela entregar logo a Presidência a Joaquim Barbosa e se exilar na Argentina?”
Meu Deus…
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro