Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Clubes militares reproduzem farsa sobre mortes em 1969

Até a serenidade mais curtida baqueia com a cantilena alegadamente jornalística que prescreve como boa prática de reportagem “equilibrar’’ os “lados’’ nas controvérsias sobre a política de extermínio consagrada pela ditadura parida em 1964.

Não havia “equilíbrio’’ entre o servidor do nazismo que apertava o botão do forno do crematório e os presos que eram incinerados como lixo nos campos de concentração.

A mesma assimetria se manifestava entre o funcionário público a serviço da ditadura brasileira que rodava a maquininha de eletrochoque, castigando o oposicionista que penava no pau-de-arara ou na cadeira-do-dragão, e quem sofria as descargas elétricas inclementes.

No jornalismo e na história, não se pode tratar como iguais quem detém poderes desiguais.

Em nome da impunidade de torturadores e matadores, às favas com os escrúpulos mais comezinhos, como diria o coronel-ministro Jarbas Passarinho – é o que sugerem os arautos do subterfúgio do “equilíbrio”.

Pois é assim que deve ser considerada a nota do Clube Militar lançada ontem [quarta, 10/12, que pode ser lida aqui]. Esta instituição defende o legado do regime em que funcionários públicos estupravam, torturavam, matavam e ocultavam corpos de jovens brasileiras sob custódia do Estado. É essa a trincheira que representa.

Hoje [11/12] foi publicado no jornal O Globo anúncio dos Clubes Naval, Militar e da Aeronáutica, compostos por militares da reserva e reformados das três Forças. Insurgem-se contra o relatório divulgado na quarta-feira pela Comissão Nacional da Verdade.

Eis o texto:

“IN MEMORIAM

“Os Clubes Naval, Militar e de Aeronáutica prestam homenagem póstuma aos 126 brasileiros que perderam suas vidas pelo irracionalismo do terror, nas décadas de 1960 e 1970. Suas histórias, absurdamente, foram desprezadas pela Comissão Nacional da Verdade, um desrespeito às suas memórias e aos seus familiares. Roga-se uma prece por suas almas.”

Seguem 126 nomes.

Entre eles fulguram alguns torturadores e assassinos, beleguins do Estado, como o famigerado delegado Octavinho, da Polícia Civil paulista.

Nenhum dos mencionados morreu na tortura.

Trágico, ridículo

Os criminosos de uniforme e colarinho que violaram os direitos humanos jamais foram julgados. Ao contrário de quem combateu a ditadura – dezenas de milhares de pessoas foram processadas e perseguidas até à margem da lei, e centenas pagaram com a vida a luta pela liberdade.

Mas a lengalenga dos amigos de torturadores – quando não torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – é manjada.

O que mais chama a atenção no anúncio é a reprodução de uma farsa largamente desmoralizada nas últimas décadas. A de que a policial Estela Borges Morato foi assassinada por “terroristas” na operação em que foi morto o guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969).

De acordo com a versão oficial da ditadura, Estela foi abatida a bala por seguranças de Marighella, militante que havia sido declarado pelo governo “inimigo publico número 1”.

Ela foi de fato alvejada numa rua escura de São Paulo na noite de 4 de novembro de 1969, quando ao menos 29 policiais armados até os dentes fuzilaram Marighella, que não carregava arma alguma, nem um canivete.

Está mais do que provado que Marighella chegou sozinho ao local onde o assassinaram (29 tiras armados contra um homem desarmado configura assassinato). Nenhum guerrilheiro atirou em Estela, que foi baleada acidentalmente por colegas, policiais como ela.

A história é reconstituída em pormenores nos capítulos “Tocaia’’ e “Post-mortem: anatomia de uma farsa’’, da biografia Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras).

Ao descrever o episódio, fundamentei-me numa infinidade de provas, apresentadas exaustivamente na narrativa e nas notas sobre fontes.

A confirmação mais relevante de que Marighella não tinha revólver consigo e de que inexistiam seguranças veio de policiais que participaram da armadilha.

Estela Borges Morato tinha meros 22 anos de idade e 29 dias de polícia. Na confusão em que seus pares dispararam em desordem, ela acabou baleada mortalmente e um delegado foi ferido.

A jovem policial foi morta por um policial, ao contrário da mentira que os veteranos militares voltam a martelar sem escrúpulos no anúncio publicado hoje.

Se não fosse trágico, como é, seria ridículo.

P.S. 1: Os signatários do anúncio também ousaram incluir como vítima da guerrilha o alemão Friedrich Adolf Rohmann. Este protético estava de carro na noite da morte de Marighella. Não acatou a ordem policial de parar, na alameda Casa Branca, e foi morto a bala pelos agentes da repressão, como os próprios policiais já reconheceram.

P.S. 2: Ao menos, os clubes dos militares pararam de apontar o sargento Guilherme do Rosário, morto no fracassado atentado do Riocentro, em 1981, como vítima do “terror”. A bomba que ele, terrorista do Exército, portava explodiu em seu colo. Vale uma prece?

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Mário Magalhães é jornalista