Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Julgar os torturadores

Depois de uma avalanche de editoriais e artigos diversionistas, como é regra na nossa imprensa desde a aprovação da Lei da Anistia, em 1979, os três principais jornais do país trouxeram elementos para a contestação da versão prevalecente a respeito do julgamento de torturadores durante a ditadura.

O tema voltou à discussão com a apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, na quarta-feira (10/12). Já na quinta-feira (11), ao noticiar a solenidade da entrega do documento, O Estado de S.Paulo abria pequeno espaço para esse debate, opondo os juristas Fábio Konder Comparato e Ives Gandra Martins, e publicava artigo que tratava da possibilidade de nova apreciação da lei pelo Supremo Tribunal Federal. No mesmo dia, a Folha de S.Paulo também discutiu essa hipótese. No Globo, a colunista de economia Míriam Leitão, ex-presa política cuja história foi relatada neste Observatório (ver “A repórter pergunta, o ministro gagueja“), interrompeu suas férias para escrever um artigo (ver aqui) à contracorrente do discurso do jornal.

No domingo (14/12), o Estado publicou entrevista de página inteira no caderno “Aliás” com o historiador José Luiz del Roio, ex-membro do PCB e da ALN (ver aqui). A Folha, embora tenha dedicado em seu espaço noticioso duas páginas a casos de mortos em consequência de ações da esquerda armada – ou da repressão a ela –, trouxe também no domingo a coluna de Antonio Prata (ver aqui) e sua vigorosa defesa da punição dos torturadores. No dia seguinte, foi a vez de Ricardo Melo (aqui) abordar o tema, com a mesma veemência.

Também na segunda-feira (15/12), em mais uma investida – a terceira, em duas semanas – pela manutenção do silêncio em torno do alcance da lei, O Globo afinal abriu espaço para o contraponto, no artigo do jornalista e ex-preso político Cid Benjamin (aqui).

Revanchismo?

Em editorial de 2/12, o jornal carioca já criticava antecipadamente a Comissão, lamentando o que chamava de falta de equilíbrio – a apuração apenas dos crimes praticados contra os militantes de esquerda – e a tendência a um “ataque” à Lei da Anistia, diante do desejo de indiciar judicialmente os acusados por esses crimes, que estariam a salvo pelo caráter supostamente recíproco da lei. No dia da entrega do documento, voltaria à carga (ver aqui), ressaltando a “demonstração de extremo equilíbrio” da presidente Dilma Rousseff, que, apesar de presa e torturada, afirmara em seu discurso que “a verdade não significa revanchismo”.

Não significa, mesmo: revanchismo seria propor que os torturadores passassem pelo mesmo tratamento dispensado às suas vítimas. Pedir que sejam julgados, pedir que se faça justiça, é algo bem diferente.

Cid Benjamin contesta os editoriais do Globo ao lembrar que a proposta de anistia aprovada em 1979 não foi fruto de consenso, como se pretende fazer crer, e defende o julgamento dos torturadores como parte de um processo de adequação da formação dos militares aos tempos da democracia.

É curioso, aliás, que o jornal insista na tese do revanchismo e afirme que a Lei da Anistia resultou “de um projeto que apostou na conciliação, e não no confronto”, quando o confronto foi promovido pelas forças que destituíram um presidente eleito e não demorariam para implantar um regime de terror no país. Como se a negociação para a aprovação da lei tivesse ocorrido entre partes em pé de igualdade.

A propósito, o artigo de Ricardo Melo na Folha não deixa dúvidas:

“Em votação apertada, 206 a 201 votos no Congresso, os generais e o alto empresariado que os sustentava obrigaram um parlamento castrado a engolir a absolvição dos algozes. Chamar isso de acordo é abusar da estupidez alheia. O maior interesse do texto sempre foi inocentar facínoras e seus mandantes, que se deleitavam com a barbárie cometida nas câmaras de tortura”.

A necessidade do julgamento

Costuma-se considerar que, ao anistiar “crimes políticos e conexos com estes”, a lei teria estabelecido automaticamente a reciprocidade, livrando ao mesmo tempo os militantes de esquerda e quem atuou na repressão a eles. Embora, na época, não admitida oficialmente – como ainda não o é hoje, pelos militares –, a tortura a presos políticos estaria implicitamente incluída entre os “crimes conexos”.

Procurei discutir essa questão em matéria publicada em 12/4/1987 no caderno B Especial do Jornal do Brasil, por meio de entrevistas com quatro advogados de renome. Três deles foram categóricos em rejeitar a versão oficial: argumentavam que a conexão se estabelece entre ações solidárias – por exemplo, quadrilha e roubo, furto e receptação –, não entre uma ação e a repressão a ela. Porém, mesmo quem acolheu a interpretação prevalecente da lei concordou em que, para ser beneficiado pela anistia, o acusado precisaria passar por julgamento: “Anistiar alguém por antecipação é uma heresia jurídica”, afirmou, então, o advogado Laércio Pellegrino, já falecido. “É condição sine qua o anistiado estar respondendo a processo ou já ter sido condenado, pois a lei se aplica a processos em curso ou findos.”

Mais de um quarto de século depois, é notável que nossos principais jornais ignorem esses argumentos e se aferrem à interpretação conveniente aos responsáveis pela instauração da ditadura e aos saudosos desses velhos tempos, que, longe de serem ingênuos, ignorantes ou desinformados, sabem muito bem o que estão fazendo quando saem às ruas com cartazes pedindo um golpe militar.

Uma entrevista esclarecedora

Por isso é tão relevante a entrevista de José Luiz del Roio ao Estado: porque lembra que “o golpe [de 1964] foi o crime original, a partir do qual se desencadearam todos os outros”, porque afirma ser inevitável a instauração de processos contra os acusados de tortura e porque contesta com clareza quem repudia o trabalho da Comissão da Verdade por não ter ouvido “os dois lados”: deveria ser evidente que a Comissão foi instituída para investigar crimes cometidos por um Estado de exceção, mesmo porque os que resistiram à ordem injusta foram perseguidos, presos, torturados, muitos foram mortos e os sobreviventes, julgados pelos tribunais da ditadura.

(Note-se, aliás, que não se trata apenas dos que pegaram em armas, embora a história da resistência à ditadura esteja sendo associada exclusivamente à luta armada, como se a repressão não tivesse desabado de maneira igualmente brutal sobre aqueles que defendiam o caminho da resistência política. O martírio de Vladimir Herzog é talvez o exemplo mais eloquente entre esses casos.)

A falácia do equilíbrio

Nenhum jornal que se preze teria o direito de ignorar essa verdade elementar: as investigações se voltaram apenas para um lado porque o outro lado foi massacrado e o que sobrou dele foi julgado e punido pelas leis de exceção da época.

No entanto, os principais jornais do país insistem na tese do “equilíbrio”, que seria inclusive um valor fundamental para a própria prática jornalística: a velha história de “ouvir os dois lados”, como garantia de uma suposta imparcialidade.

Do ponto de vista teórico, esse princípio é facilmente contestável, e aqui me valho dos argumentos da professora Judith Lichtenberg em artigo publicado no livro Mass Media and Society, organizado por James Curran e Michael Gurevitch. Diz ela que “equilíbrio” é algo comumente entendido como resultado de interpretações normalmente aceitas, e é abalado diante de versões controversas: tudo depende dos consensos existentes em cada cultura e em cada época.

Além disso, a exposição de diferentes interpretações sobre um mesmo fato supostamente deixaria o público em condições de tirar suas próprias conclusões. Porém, se o jornalismo realmente equilibrasse os enfoques, não haveria meio racional para qualquer julgamento. Logo, a conclusão seria de que há verdade em todos os lados, ou em nenhum: pois, se tudo é equivalente, um ponto de vista é tão bom quanto qualquer outro.

É claro que não se trata de sugerir que os jornais deixem de apresentar diferentes versões sobre um fato – aliás, as considerações sobre o equilíbrio estão associadas a uma densa discussão sobre a objetividade no jornalismo, que não é possível abordar aqui –, mas sim de demonstrar que não é possível esconder-se atrás de uma alegada neutralidade: todo jornal tem responsabilidade sobre o que publica e precisa se posicionar diante dos fatos que relata.

Revelar a realidade

Além disso, deveríamos saber que não é lógico nem possível tratar igualmente os desiguais: forjar um equilíbrio inexistente na prática é falsear a realidade. A realidade: justamente o que o jornalismo promete revelar.

Ao criticar o anúncio publicado pelos clubes militares em resposta ao documento da Comissão da Verdade, com a relação – aliás, precária, por incorrer em erros – dos mortos “do outro lado” (ver aqui), o jornalista Mário Magalhães foi ao mesmo tempo claro e contundente:

“Não havia ‘equilíbrio’ entre o servidor do nazismo que apertava o botão do forno do crematório e os presos que eram incinerados como lixo nos campos de concentração.

“A mesma assimetria se manifestava entre o funcionário público a serviço da ditadura brasileira que rodava a maquininha de eletrochoque, castigando o oposicionista que penava no pau-de-arara ou na cadeira-do-dragão, e quem sofria as descargas elétricas inclementes.

“No jornalismo e na história, não se pode tratar como iguais quem detém poderes desiguais”.

Em nome do futuro

Terá sido ironia do destino a coincidência da divulgação do documento da nossa Comissão da Verdade com a do relatório da Comissão de Inteligência do Senado dos Estados Unidos sobre os abusos cometidos pela CIA entre 2001 e 2009, cinicamente chamados de “técnicas de interrogatório avançadas” ou “conjunto de procedimentos alternativos”. A propósito, em artigo no Globo (“Chega de eufemismos“, 14/10), Dorrit Harazim ressalta:

“Torturar é errado não pela existência de uma convenção da ONU e de leis nacionais que a proíbem. Ocorre o contrário. As proibições legais foram sendo construídas porque as sociedades civilizadas reconheceram que seres humanos não devem torturar. Ponto”.

Por isso a tortura tornou-se um crime imprescritível.

Nossa imprensa deveria estar à altura desse postulado, se de fato pretende defender os mais preciosos valores humanos e a ordem democrática.

“As concessões diante de um passado abominável têm alto preço no presente e no futuro. O deputado Bolsonaro está aí para provar”, escreveu Ricardo Melo. “Bolsonaro idolatra o estupro, ofende colegas e faz pouco dos direitos humanos sempre que pode. Um bandido. Seus herdeiros seguem pelo mesmo caminho, clamando pela intervenção militar. Num belo dia, a história pede licença para se repetir.” 

Da mesma forma, Cid Benjamin argumenta: “Para que uma página da História seja virada, ela deve ser lida. Só assim se criam anticorpos para que tempos sombrios não voltem”.

É, portanto, em nome do futuro que se exige justiça.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)