Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Poder pelo poder

“O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder.” (1984, de George Orwell)

A tortura pode salvar a vida dos arquitetos do ataque de 11 de setembro. Nesta segunda-feira, uma audiência pré-julgamento vai ser realizada em Guantánamo, a prisão que o relatório divulgado por senadores do Partido Democrata, na semana passada, confirmou ser um dos locais onde a CIA torturou detentos.

No sábado [13/12], um juiz militar mandou os promotores envolvidos no julgamento dos cinco acusados de planejar os ataques de 2001 fazer uma revisão completa de todos os documentos selados no processo. Agora que o público americano foi informado do programa de tortura da CIA no governo de George W. Bush, a medida do juiz sugere uma possível liberação de parte dos documentos selados, o que há de beneficiar o trabalho da defesa. A promotoria já estava instruída a não considerar confissões obtidas sob a coerção que até jornalistas continuam a designar pelo eufemismo de interrogatórios reforçados. Quem acredita que ser esbofeteado, afogado e ter alimentos introduzidos no seu ânus constitui e não um crime praticado pelo Estado, ainda tem bastante companhia.

O julgamento dos cinco de Guantánamo não deve mais começar em janeiro, como se previa inicialmente. Mas a divulgação do relatório no Senado há de pesar nas expectativas dos promotores, que terão que ajustar sua expectativa de sentença ao prejuízo causado pela tortura à credibilidade do governo. Quem pensa assim é um tenente coronel que ficou tão horrorizado com o que viu em Guantánamo em 2003, que renunciou ao cargo de promotor militar. Hoje reformado e juiz da justiça civil, Stuart Couch deu uma entrevista à rádio pública NPR, no fim de semana, e repetiu um mote dos senadores democratas que insistiram em divulgar o relatório de mais de quinhentas páginas. Além de sua oposição moral, como cristão, ao tratamento bárbaro dos prisioneiros, Couch acha que a CIA fez do país inimigo de si mesmo. Em Guantánamo, Couch examinou os detalhes do caso do governo contra Khalid Sheikh Mohammed, o cérebro do grupo responsável pelo 11 de setembro. E garante que já havia provas suficientes para condenar Mohammed antes de intimidá-lo com afogamento um total de 183 vezes.

Fôlego autoritário

Enquanto escrevo, um rosto tenso aparece na tela, ao vivo. Ele é John Choon Yoo, um sul-coreano que imigrou para os Estados Unidos ainda criança e hoje dá aula na escola de Direito da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Yoo é autor do infame “memorando da tortura” de 2002, quando era subsecretário de Justiça de George W. Bush. Ele deu ao governo Bush a desculpa jurídica para torturar, com estas palavras:

“O tratamento cruel, desumano e degradante de prisioneiros poderia ser autorizado, com poucas restrições”. Entrevistado na CNN, Yoo ouve impassível enquanto o jornalista Fareed Zakaria descreve os métodos usados nas prisões secretas da CIA e lhe pergunta se constituem tortura. Ele responde que são exemplos “problemáticos” que não tinham sido aprovados. Mas acrescenta que não confia no relatório do Senado, não só porque não teve participação dos republicanos, como também porque selecionou os depoimentos. Não se nota remorso algum no homem que o diretor de outra faculdade de Direito da mesma universidade considera passível de processo por incitar a violação do ato federal americano que considera a tortura crime.

Barack Obama aboliu a tortura autorizada por George Bush assim que assumiu a presidência, em janeiro de 2009. Mas seu governo não teve a menor pressa em jogar luz sobre a investigação da CIA, de fato, contribuiu para atrasar o relatório. E seu Departamento de Justiça abriu mão da prerrogativa de processar criminalmente os diretamente envolvidos, temendo que haveria um racha com os republicanos e uma paralisia legislativa. Os republicanos agradeceram com seis anos de hostilidade, fecharam o governo durante 16 dias em 2013 e continuam a obstruir sistematicamente as iniciativas de Obama.

No anos da Guerra Fria, os falcões da inteligência em Washington se queixavam da desvantagem norte-americana diante da ditadura soviética. Tinham que operar sob a separação dos três poderes, dar satisfações ao Congresso e responder à Justiça. Operação de inteligência, por ser definida pelo segredo, é constante desafio e ameaça à democracia. Mas não foram os inimigos com a suposta vantagem do autoritarismo que prevaleceram em 1991, quando a União Soviética se dissolveu.

O país que se comportou de maneira tão depravada com seus prisioneiros é o mesmo país que acaba de revelar ao mundo os detalhes do horror. A democracia produz aberrações, mas quem prefere a alternativa? Infelizmente, a resposta, neste 2014 marcado por novo fôlego autoritário, é: boa parte da população do planeta.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York