Em tempos de operações que investigam históricas corrupções na maior estatal do Brasil para enriquecer partidos políticos, bem como em tempos de reforma ministerial, ou nova (será?) equipe econômica do governo federal, de manifestações democráticas e outras que se valem da democracia para reivindicar intervenções pouco democráticas, e até mesmo num tempo em que se volta a falar de Nardonis, quanta falta faz a narrativa jornalística com pitadas de literatura.
Não, não se trata de nostalgia. Por dois motivos: não sou de uma geração que gozou da revista Realidade ou do auge do Jornal da Tarde, o que torna anacrônico falar de saudade; e porque o convite aqui é muito mais para pensar o jornalismo em sua contemporaneidade.
Infelizmente, já não está mais em questão a falta de tempo que a maioria da população (ao menos a que lê periódicos) tem para se dedicar a suas leituras diárias e informativas. O mundo está corrido, nosso tempo é assim, o capitalismo venceu ao nos fazer acreditar que ócio é uma coisa ruim etc., etc. Bom, se isso é um dado, em vez de reclamarmos da falta de tempo (porque reclamar é fácil, mas abrir mão do consumo não), por que não exigirmos que dentro do pouco que nos resta dele ainda nos sejam ofertadas matérias jornalísticas minimamente humanizadas? Não se trata de alongar o texto ou estabelecer uma linguagem indireta para fazer chegar o fato, pois não temos tempo para isso.
Notemos que a sobrevida do jornalismo narrativo hoje se manifesta em periódicos que não são consumidos junto com a rotina. A leitura de uma piauí, ou de uma Revista Bula, Rolling Stone, Vice não se faz nos vinte minutos em que nos equilibramos apertados dentro de um transporte público em horário de ida ao trabalho, ou nos quinze minutos que conseguimos reservar para a leitura de informações no café da manhã. Ah, mas hoje estamos na era dos tablets e smartphones!
OK, mas a lógica para a informação ainda é da quantidade e não da qualidade para a maioria dos leitores, o que faz com que, mesmo que consigamos um assento no transporte público, nossa preferência será pelo quanto de informação conseguimos absorver enquanto estamos acomodados e com o 3G funcionando.
Um dos problemas dessa naturalização da falta de tempo para leituras menos diretas é que consolidamos, com nossa falta de senso crítico, gêneros jornalísticos robotizados e passamos a acreditar que é disso mesmo que precisamos, pois não temos tempo para firulas. Numa época entrelaçada pela cultura e expressão digital, devíamos tender muito mais à mistura e fusão de gêneros do que à legitimação daqueles que vêm sendo praticado no Brasil desde que o lead (o quê, quem, quando, onde, como e por quê) aqui chegou para dinamizar nosso processo de absorção de informações.
Diferentes formas de contar fatos e feitos
Se prestarmos melhor atenção a fenômenos que vêm ocorrendo na literatura e na arte, por exemplo, veremos que muitas experiências já são feitas com o intuito de mostrar que os gêneros podem ser repensados na dinâmica da linguagem digital. O Itaú Cultural de São Paulo promove a Bienal de Arte digital, a Fiesp hospeda o Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas, centros universitários fomentam debates e encontros que se propõem a rediscutir categorias, gêneros e conceitos implicados na prática da literatura e da arte. Os departamentos de comunicação em diferentes universidades já encampam pesquisas para entender uma possível nova ordem do jornalismo em tempos de comunicação digital. Grandes nomes e empresas da comunicação inventam congressos para discutir modelos de jornalismo diante dessa linguagem que não contornamos mais. Esses breves e misturados exemplos nos servem para compreendermos que, no que diz respeito a contar uma história diante das linguagens da contemporaneidade, muita coisa deve ser reconfigurada. E nessa reconfiguração, por que não colocarmos em xeque a dicotomia que se consolidou no jornalismo entre textos meramente informativos e textos criativos? Notem que não se trata de enaltecer um em detrimento do outro, mas sim, de pensarmos que não é apenas a apuração e os dados mais próximos da realidade que garantem a um jornalista cumprir o seu papel mais romântico de historiador do presente. Bem como não é apenas a contação de histórias reais com recursos literários que garante a humanização dos fatos.
O que se pode vislumbrar, diante dessa linguagem verbivocovisual (verbo, som, imagem), é a possiblidade de não repetirmos com os recursos do presente apenas o que já se determinou como expressão com os recursos dos anos passados e que transbordam no nosso tempo (a ideia de transbordar se presta melhor aqui do que a ideia de substituição de uma linguagem pela outra). Saber ler o próprio presente não apenas fez de artistas e poetas referências que o tempo nos trouxe, como também ajudou a canonizar bons contadores de história (e a lista de jornalistas entre estes não é pequena). No entanto, contar a história de seu tempo, os grandes já mostraram, é saber também com que linguagem e forma expressiva contar. Por isso, complexificar a expressão do jornalismo diante das linguagens digitais, para que ele não se limite a números e objetividades estanques, demandaria um exercício de compreensão dos nossos próprios mecanismos de escrita para depois então pensarmos em algo que não seja apenas a tentativa de trazer os anos de 1960 e 70 para o século 21 e menos ainda que seja a perpetuação do lead corroborado pelo poder de apuração da internet.
Parte da habilidade que jovens e não tão jovens jornalistas têm demonstrado ao articular dispositivos e linguagens eletrônicas pode e deve ser canalizada para elaborar diferentes formas (verbivocovisuais) de contar os fatos e feitos do nosso cotidiano sem perder de vista a delicadeza presente na “realidade”.
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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social