Dias atrás, uma seção de revista semanal registrava a frase de uma moça para sua amiga num banheiro: “Eu me sinto tão livre quando saio com o carregador de celular!”.
Isso pode ser entendido de várias formas, a exemplo de “liberdade é a comunicação instantânea e ininterrupta”, ou então “liberdade é poder reproduzir a própria imagem sem limitações”, etc. Por seu poder de contágio social ou por sua potência “viral”, como agora se diz, o autorretrato ou selfie – eleita “palavra do ano” pelo Dicionário Oxford em 2013 – é hoje a principal obsessão dos usuários das redes sociais.
Assim como no pensamento reflexivo os conceitos têm de encadear-se para fazer sentido, é preciso que se encadeiem os atos inerentes à deriva eletrônica, se pretendemos compreender os pequenos jogos de usos emergentes: celular carregado, instantaneidade e selfie são momentos de um mesmo movimento de novas intensidades sociais. Que intensidades? Os jogos de palavras e de ações que repercutem nos corpos dos internautas.
A frase da moça no banheiro pertence, assim, ao mesmo fluxo semiótico (cultural?) de eventos semelhantes ao dos acompanhantes de um enterro que se autorretratam ao lado do caixão, ou então o dos autores de selfies em frente ao café onde terrorista e reféns estavam sendo mortos a tiros (Sidney, Austrália). Na condição sociopsíquica dessa nova ordem sociotécnica, a visibilidade e a conectividade dos sujeitos desempenham um papel crucial.
A visibilidade – o plano das aparências – não é um requisito simples, pois suscita os problemas do reconhecimento social e do valor humano. Logo, é uma questão de natureza ética. A distinção entre valor de uso (a utilidade de um bem) e valor de troca (a circulação do bem no mercado) refere-se apenas a objetos, mas a título provisório pode-se indagar sobre a possibilidade de aplicação desses conceitos a pessoas.
O valor de uso de um indivíduo seria, digamos, sua boa integração (civil, profissional, moral, etc.) na cidadania, algo imanente à esfera privada. O valor de troca seria a medida circulatória de sua imagem cidadã, o que implica avaliação ou reconhecimento por parte de outros, os concidadãos; portanto, algo basicamente público.
A coisa é, porém, mais complexa. Com o indivíduo, o valor é sempre ético e procede do próprio fato da existência: diferentemente do animal, o homem não só vive, mas existe, o que significa paixão pela vida, busca de sentido e ampliação de horizontes existenciais. O conceito de valor liga-se à complexidade do próprio pensamento, pois aborda a dimensão onde o espírito se movimenta para além do puro instinto de conservação de si mesmo.
Nessa dimensão, o valor individual não é antitético ao de sua imagem pública, circulante na comunidade. Daí, entre os antigos, o acolhimento comunitário da fama, que não seria o brilho superficial, o mero aparecer de alguém, mas o que sempre se escuta de novo em razão da força virtuosa de uma presença. A ética decorre precisamente das decisões que a comunidade toma sobre o valor quando se trata de orientar as relações individuais e coletivas no empenho de produção do real. O valor da imagem é ético quando se define como elemento dinâmico do agir.
Ser é então mais do que aparecer; o sujeito é falado porque é famoso.
Transformação geográfica
Na sociedade contemporânea, onde as relações sociais tendem a reger-se por imagens midiáticas (imprensa escrita, televisão, internet) – portanto, por uma “comunidade segunda”, a reboque da tecnologia e do mercado –, a imagem de um indivíduo, principalmente na indústria do espetáculo, pode agregar valor econômico na medida de seu incremento técnico: amplitude do espelhamento e da atenção pública.
Aparecer é então mais do que ser; o sujeito é famoso porque é falado.
Nesse âmbito, a lógica circulatória do mercado, ao mesmo tempo que acena democraticamente para as massas com supostos “ganhos distributivos” (a informação ilimitada, a quebra das supostas hierarquias culturais), afeta a velha cultura disseminada na esfera pública. A participação nas redes sociais, a obsessão dos selfies – tanto falar e ser falado quanto ser visto – são índices do desejo de espelhamento.
Isso significa democratização e ampliação da esfera pública?
Realmente, não. O que de fato constituía a esfera pública era sua capacidade de conversão de qualquer discurso especializado (eclesiástico, artístico, etc.) ao comum da racionalidade discursiva. Como bem ressalta o pensador português José Gil: “O espaço público, no sentido em que empregamos essa expressão algo inadequada, não é o lugar da ‘opinião pública’ nem de manifestações coletivas, políticas ou outras. Mais mesmo do que um espaço de comunicação, é um lugar de transformação anônima dos objetos individuais de expressão (…) Sua característica primeira é a de constituir uma exterioridade, um ‘fora’ para os sujeitos (individuais ou coletivos) que nele penetram…”
Essa esfera pública era, portanto, essencialmente política.
Mas, à medida que se ampliava espacialmente por efeito das tecnologias da comunicação ao longo de todo o século 20, a esfera pública foi sendo expropriada do poder de conversão do “dentro” em “fora” característica do clássico espaço público burguês. Foi também progressivamente liberando-se da ideologia cívica característica do período oitocentista que, mesmo monopolizada pela burguesia ascendente, abrigava pretensões universalistas (“liberté, égalité, fraternité”) no que diz respeito ao escopo heterogêneo das classes sociais.
Pode-se, assim, aventar a hipótese do fim da clássica esfera pública (junto com o fim da política em seu sentido forte) e do início do espaço da conectividade, gerado pelas tecnologias eletrônicas. A democracia das opiniões dá lugar à democracia das emoções – baratas. Os signos, os discursos e os dispositivos técnicos são os pressupostos de uma forma nova de socializar ou de um novo ecossistema existencial em que a comunicação equivale a um modo geral de organização da vida social e não a uma superfície transitiva de linguagem.
Instalada como um mundo de sistemas interligados de produção, circulação e consumo, a nova ordem sociotécnica visa a assegurar a continuidade, com dominância financeira e tecnológica, da mercantilização alavancada pelo capitalismo no início da modernidade ocidental. No atual rearranjo de pessoas e coisas, a comunicação revela-se como principal forma organizativa.
Comunicar não é falar (como supõe a ideologia jornalística), mas fazer conexões. No âmbito do capitalismo financeiro que nos rege, essa dimensão implica uma nova orientação existencial, homóloga ao novo modo de ser da riqueza. O princípio de organização do comum humano é agora reinterpretado por sistemas movidos a tecnologia eletrônica. Goethe fala disso no Fausto, ao chamar a atenção para o fato de que a vida “natural” não é a realidade última e sim “as formas de ser”.
São inquietantes as formas de ser compatíveis com o novo modo de ser da riqueza. Inquietantes porque representam um abalo no solo em que pisamos, atingindo nosso sentido de pertencimento ao mundo e ao sistema de valores do que consideramos “próprio”. É um abalo de longa data ou longa maturação, um terremoto latente nas dobras do racionalismo ocidental.
Por exemplo, para o cineasta britânico Terry Gilliam, que tematiza no filme O Teorema Zero a solidão do indivíduo contemporâneo, “hoje em dia, parece que só existimos quando tuitamos, telefonamos para alguém, postamos uma foto ou um comentário nas redes sociais. Somos como neurônios de um grande sistema nervoso, ligados por sinapses a outros neurônios”.
Bem antes de McLuhan, o jesuíta Teilhard de Chardin havia descrito dessa maneira, em meados do século passado, o sistema de comunicação, que já se antevia como planetário. Mais do que uma questão de discurso ou de mera transmissão de mensagens, a comunicação implica uma transformação geográfica no sentido de que seus deslocamentos, por efeito da compressão temporal do espaço, formam um novo “continente”, o oitavo, feito de bytes, virtual, acima ou abaixo de todos os outros.
Paisagem social
O cerne da questão está de fato na “aceleração” da experiência humana. A compressão do espaço pela aceleração do tempo é a razão última de nosso deslocamento global, em que os afetos (emoções, sensações, comoções, sentimentos) emergem com o poder das imagens e dos algoritmos, relegando ao segundo plano a lógica argumentativa das palavras. Aqui se localiza uma parte das razões da crise contemporânea da imprensa.
Por outro lado, os conceitos de espetacularização e narcisismo já se revelam insuficientes para dar conta dessa nova “forma de ser” compatível com a financeirização e com a tecnologia eletrônica. Mais vale atentar para a espetacularização ou o gozo do estar-conectado, como uma nova forma de estar-no-mundo em que o sujeito parece existir apenas quando reproduzido no espelho, à espera de uma conexão.
Toda conexão é gozosa, como bem o sabem os órgãos do corpo e os dispositivos técnicos do corpo-sem-órgãos agenciados por indústria e consumo. A banalidade é fatal. E o selfie é só um pequeno índice dessa possibilidade infinita de reprodução no espelho em que, a pretexto de uma conexão com um outro, o indivíduo desfruta de si mesmo como um átomo isolado numa paisagem social de seres nômades ou dispersos. No deserto humano que cresce, contra a irredutível banalidade dos atos nada pode o divino, nem a obra de arte.
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Muniz Sodré, professor emérito da UFRJ, foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional (2005-2010) e acaba de publicar A Ciência do Comum – Notas Para o Método Comunicacional (Editora Vozes)