Para assinar uma revista semanal por um ano, o leitor brasileiro paga em média 430 reais. Em troca, recebe na sua casa o produto, um compilado das principais notícias selecionadas por editores que muitas vezes ele desconhece – e segundo critérios que raramente são explicitados de maneira aberta e transparente. O assinante tampouco tem alguma influência sobre a face mais visível da publicação, ou seja, os seus autores, de forma que, quando a diretoria resolve “enxugar” o pessoal, ele é o último a ficar sabendo. Não cabe a ele opinar sobre como é gasto o seu dinheiro. Sua participação se limita a ler a revista; se tiver alguma crítica ou sugestão, pode escrever uma carta para a seção do leitor ou reclamar no setor de relacionamento com o cliente. Seu papel como financiador é pequeno. Se decidir assinar a publicação, o que ele vai receber é o mesmo produto que todos os outros leitores e assinantes. Se não assinar, a revista seguirá existindo assim mesmo.
Isso tudo pode parecer óbvio, mas é fundamental para entender o que tem levado milhares de pessoas a gastarem o seu dinheiro com projetos de jornalismo que ainda nem existem, por meio do mecanismo do financiamento coletivo, ou crowdfunding. A Agência Pública, da qual sou uma das diretoras, encerrou há cerca de três meses um grande projeto nesse modelo, o Reportagem Pública, que financiou 12 bolsas para jornalistas realizarem a reportagem dos seus sonhos de maneira independente.
Durante a campanha de arrecadação, que durou 45 dias entre agosto e setembro de 2013, conseguimos reunir 58.935 reais de 808 apoiadores, uma média de 72 reais por apoiador. Em troca, publicamos 12 reportagens investigativas ao longo de seis meses no nosso site e na nossa rede de republicadores (já que funcionamos como uma agência). Não é tanto, se comparado com a quantidade de reportagens que uma revista consegue produzir a um custo de cerca de 12 reais por edição. Mas quando se fala de crowdfunding se está falando de um modelo completamente diferente. O foco é a qualidade e não a quantidade. E não se trata de qualidade jornalística apenas, mas de experiência. Não se trata de uma relação entre fornecedor e consumidor, mas de algo simbolicamente muito mais complexo: a integração do leitor no fazer jornalístico. E é por isso que combina tão bem com a nova era da produção do jornalismo pós-industrial.
Rápido crescimento
No Brasil, o crowdfunding para jornalismo, no modelo atual, surgiu em 2011, com o lançamento da plataforma Catarse. Um de seus quatro primeiros projetos era jornalístico: foi o Cidades para Pessoas, da jornalista Natália Garcia, que conseguiu arrecadar mais de 25 mil reais para financiar viagens da repórter a 12 cidades, para conhecer e relatar soluções urbanísticas que privilegiam o bem-viver nas metrópoles.
O projeto, que segue até hoje, carrega do seu financiamento inicial a liberdade editorial, inclusive de formatos multimídia e outros que ultrapassam o site, incluindo exposições e intervenções artísticas. Assim, tornou-se em três anos referência e conquistou outras fontes de recursos, como curadorias e palestras. Antes de a proposta ser lançada no Catarse, Natália Garcia a estava negociando com o portal do Estado de S. Paulo. Ponderou que, se decidisse por esse caminho, teria grande exposição, mas seria obrigada a dividir os créditos com o jornal (que iria inclusive palpitar no nome do projeto), ceder o conteúdo como propriedade intelectual da empresa e alinhar-se às suas estratégias e à sua marca. Foi então que Natália preferiu abrir essa nova fronteira no Brasil, e com isso revestiu seu projeto de outra característica que tem marcado os projetos jornalísticos financiados por crowdfunding: a inovação.
O surgimento e vertiginoso crescimento do crowdfunding no Brasil – não só aquele circunscrito ao jornalismo, mas a diversas áreas – surpreendeu a todos, por se tratar de um país em que se tem a impressão de que as pessoas “não doam” para “causas” do terceiro setor. O Catarse, que é a maior plataforma de crowdfunding do país, conseguiu tornar realidade mais de mil projetos, levantando uma quantia superior a 14 milhões de reais. Para entender quem doa e por quê, o Catarse realizou em 2013 a pesquisa Retrato do Financiamento Coletivo no Brasil, voltada àqueles que já doaram para iniciativas na área. Vale ler o relatório final, resultado de 3.336 entrevistas. Chama a atenção o fato de que 74% das pessoas que doaram recebem até 6.000 reais por mês – ou seja, são de classe média, não exatamente o tipo de gente que realiza doações porque está “sobrando” dinheiro. Doam porque veem ali um enorme benefício.
Mas qual seria esse benefício? Algumas respostas ajudam a entender a questão. Entre os doadores, 26% trabalham em empresas privadas, mas é grande a quantidade de freelancers (14%), empreendedores (14%) e estudantes (13%). Mais interessante ainda: 68% dos empreendedores entrevistados enxergam potencial de financiamento coletivo em seus negócios; e 81% dos estudantes entrevistados estão interessados em empreender projetos próprios após se formarem. Isso significa que, ao doar para projetos de financiamento coletivo, eles não estão apenas buscando a concretização daquele projeto e o seu benefício direto; estão fortalecendo uma comunidade e uma alternativa econômica da qual eles mesmos podem se valer algum dia.
Mas como isso pode beneficiar o jornalismo, ou os jornalistas? Outro dado que salta aos olhos na pesquisa é que 10% dos entrevistados disseram trabalhar na área de jornalismo e comunicação, sendo ela uma das três áreas mais recorrentes, ao lado de web e administração. No caso específico do jornalismo, abre-se aí uma nova fronteira do que seria a participação do público, que vai muito além dos pequenos e restritos papéis que lhe eram permitidos tradicionalmente.
Nossa experiência
Foi essa questão que nos instigou a construir o projeto Reportagem Pública. Inauguramos a campanha de arrecadação num momento muito especial: em junho e julho de 2013, protestos massivos como não se viam havia décadas chacoalharam o Brasil. E, junto com eles, um dos fenômenos mais instigantes do jornalismo nos últimos anos, o surgimento de coletivos de cobertura cidadã, como o Mídia Ninja, Rio na Rua e BH nas Ruas, que acabaram suprindo uma demanda de informação quente, do front das manifestações, ao vivo e sem cortes.
Para além da imediatez da informação e do ineditismo daquela cobertura, o que esses coletivos demonstraram foi o desejo da população – em especial dos mais jovens – de ver uma cobertura menos circunscrita aos informes oficiais, mais interessada a voltar às ruas, ao rés do chão, para ouvir as pessoas. Um jornalismo que descesse do seu pedestal e se identificasse com os manifestantes. Um jornalismo questionador, que denunciasse e perseguisse impiedosamente o aviltante abuso policial, que não apareceu na cobertura da imprensa até um segundo momento. E um jornalismo que lhes permitisse fazer parte – seja por meio de comentários, seja como retransmissores pelo compartilhamento de informações e links pelas redes sociais, seja exercendo a função de “ninjas” por um dia – de sua elaboração.
Por outro lado, a produção desses coletivos era pouco criteriosa em termos jornalísticos, o que deixou claras as limitações desse modelo. Contudo, as iniciativas provaram que havia uma grande demanda por um jornalismo mais aguerrido e crítico no Brasil. A Agência Pública sempre se dedicou a cumprir esse papel na produção de reportagens aprofundadas com distribuição livre. Chegava a hora de radicalizar essa experiência. A pergunta, para nós, era: como combinar o rigor necessário ao jornalismo com a colaboratividade típica da era da internet?
No caso do jornalismo investigativo, o problema é ainda mais complexo. Queríamos que o público pudesse contribuir não só doando, mas como informadores e colaboradores dos repórteres, trazendo contatos, dados, fontes que poderiam ajudar na reportagem. Mas os jornalistas investigativos têm natural resistência, por exemplo, em abrir sua pauta. Além disso, informações vindas do público teriam que ser checadas e rechecadas, o que poderia gerar ainda mais trabalho. Mas achamos, mesmo assim, que valia a pena, e conseguimos encontrar jornalistas abertos para essa nova experiência.
O projeto funcionou desta forma: os apoiadores podiam doar a partir de 20 reais, depois 50, 100 e dali por diante. Dependendo do valor doado, receberiam uma “recompensa” pela doação – desde adesivos, o nome no site da Pública como apoiador, até livros dos nossos conselheiros, como Eliane Brum, Leonardo Sakamoto e Carlos Alberto Azevedo. Além disso todos os doadores, independentemente do valor despendido, poderia votar nas 12 reportagens que receberam 6.000 reais e a mentoria da Pública para serem realizadas por jornalistas independentes.
Abrimos, em seguida, uma chamada para jornalistas enviarem suas propostas de reportagem, exigindo uma pré-apuração consistente, experiência em realizar reportagens de campo e um plano de trabalho detalhado. Foram cerca de 150 propostas. Selecionamos as 45 mais promissoras e criamos uma página especial com um resumo de cada proposta. Nesse hotsite, os doadores recebiam uma senha para votar nas suas preferidas, além de poderem compartilhar nas suas redes a reportagem de que mais gostaram e adicionar informações ou fontes, estando em contato direto com os repórteres.
Doadores arregaçam as mangas
Uma vez eleitas, as reportagens foram produzidas em um período de dois a quatro meses, com nossa coordenação e edição, e foram publicadas durante o primeiro semestre de 2014. O resultado foram séries de muita qualidade, como a denúncia sobre casos de explosões de Vectras fabricados pela GM no Brasil; um levantamento extensivo sobre a negação do direito das mulheres ao aborto nos casos em que é permitido por lei; um perfil das quatro empreiteiras que mais se beneficiaram com as obras para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas no Rio de Janeiro; e uma reportagem sobre a luta dos moradores de São Lourenço (MG) contra a exploração das águas minerais pela Nestlé.
Além disso, convidamos os 808 doadores dos projetos para participar de uma lista de discussão com os repórteres e as editoras da Pública. Por meio dela, mandamos notícias sobre o andamento das pautas, o uso dos recursos no projeto, o envio das recompensas e discutimos soluções para aquelas ideias que não haviam sido financiadas (uma delas foi viabilizada, depois, por meio de sua própria campanha de crowdfunding, e outra recebeu apoio de uma revista para se tornar realidade). O grupo segue ativo até hoje e tem sido fonte de informações para trabalhos acadêmicos.
Quase tão importante quanto a participação durante a elaboração das reportagens foi o apoio dessa comunidade à sua disseminação, uma vez publicadas. Os participantes foram avisados na véspera e se engajaram bastante no processo, enviando links por e-mail aos seus conhecidos, compartilhando textos via redes sociais, recomendando a leitura e sugerindo veículos que poderiam republicar as reportagens (todas elas, como tudo na Agência Pública, foram distribuídas sob licença Creative Commons, permitindo o livre uso, desde que sem alterações e com o devido crédito).
Graças a esse esforço coletivo, as reportagens foram compartilhadas nas redes sociais em média duas vezes mais do que as outras matérias da Pública. A reportagem que mais rodou nas redes, “Quanto mais presos, maior o lucro”, de autoria de Paula Saccheta – que estuda o processo de privatização de presídios em Minas Gerais –, teve 12 mil compartilhamentos, e o vídeo foi visto por 51 mil pessoas.
O mais interessante, para mim, nesse processo, foi o convite à participação do fazer jornalístico em diversas etapas do processo. Falta ainda à maioria dos jornalistas a compreensão de que o jornalismo pós-industrial tem que ser observado como um processo completo, que vai desde o levantamento de fundos, passando pela seleção da pauta, até a sua distribuição final – e, muitas vezes, tudo isso é feito pela mesma pessoa.
Aqui na Pública, nos quase quatro anos de existência, dedicamos muito tempo a compreender esse processo que domina todas as etapas (claro que sempre há o que aprimorar, e novas tendências e soluções vão surgindo). Todos, aqui, compreendem todo o processo e têm aprendido a operar cada estágio.
De maneira geral, o barato do crowdfunding é que ele permite que se abra qualquer uma das fases, convidando a participação de outras pessoas em diferentes graus e permitindo que o projeto seja “abraçado” por elas, de verdade.
Lá fora é assim
A tendência de financiar jornalismo por meio de crowdfunding não é nova – está nas origens do site Spot.us, o primeiro do tipo dedicado apenas a projetos de reportagens independentes, fundado em 2008 nos Estados Unidos pelo jovem empreendedor David Cohn. O site hoje pertence ao American Public Media e teve mais de 22.350 doadores ao longo desse tempo. O Guardian abriu este ano um canal próprio dentro
do site Kickstarter, um dos mais conhecidos dos Estados Unidos. O jornal é responsável por selecionar projetos interessantes, emprestando sua marca a jornalistas que buscam viabilizar o financiamento. “Em contraponto à redução de fluxo e à confusão no negócio de jornalismo, mais de 10 milhões de dólares foram levantados para 2.000 projetos de jornalismo, rádio e podcast no Kickstarter até hoje”, disse o editor do Guardian, Caspar Llewellyn Smith, ao anunciar o novo canal.
Mas a mais impressionante campanha de financiamento coletivo veio de um grupo de jornalistas bastante conhecidos apenas em seu país, a Holanda. A equipe que fundou o site De Correspondent, embora bastante jovem, conta com alguns dos jornalistas mais respeitados do país europeu. Para financiar o lançamento do site, cujo conteúdo é aberto para assinantes (chamados de “membros”) e se foca em artigos de opinião e análise, além de reportagens investigativas, o grupo conseguiu levantar mais de 1 milhão de euros de 18.300 pessoas. A regra era simples: quem doasse 60 euros ganharia uma assinatura durante um ano. O anúncio do projeto foi feito durante um programa na TV, e em uma semana mais de 15 mil pessoas já haviam doado.
No texto de celebração de 1 ano do lançamento do site, o fundador, Ernst-Jan Pfauth, conta que 11 mil dentre os financiadores iniciais renovaram sua inscrição. Além deles, mais 17 mil se tornaram membros no último ano. Fundamental, escreve o editor, é ver o papel do jornalista não como um sabe-tudo, mas como um “líder conversacional”, que encabeça uma discussão da qual tomam parte todos os membros do site.
“No De Correspondent, acreditamos que os jornalistas têm que trabalhar junto com os leitores, já que cada leitor é um expert em alguma coisa. E 3.000 professores sabem mais que apenas um repórter que cobre educação”, explica. Pfauth resumiu em cinco pontos as lições aprendidas durante esse ano. Todas elas tratam o leitor como parte integrante da produção noticiosa:
>> Explique como você gasta o dinheiro dos seus membros;
>> Encoraje os jornalistas a trabalhar junto com os membros;
>> Seus membros são seus melhores “embaixadores”;
>> Dedique-se a buscar ativamente aquelas pessoas que já gostam do seu trabalho;
>> E pense além da sua plataforma quando publicar as suas histórias e alcançar diferentes públicos.
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Natalia Viana é codiretora da Agência Pública