Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mistério de represas que as chuvas não enchem

O modesto recomeço da temporada chuvosa trouxe para as redações do Sudeste, sobretudo as paulistas, novos chavões: “Aguaceiros não aumentam nível dos reservatórios”. Boletins de rádio, jornais e telejornais, durante dias entoaram a mesma cantilena sem que editores, pauteiros e repórteres investigativos atinassem com uma explicação convincente. Pouco antes do Natal, a reviravolta: “Reservatórios começam a encher”. Finalmente, a surpresa: “Não choveu e nível subiu”. Este sobe-desce deve continuar até o fim das águas de março.

A solução do enigma é quase óbvia: com a prolongada estiagem as represas ficaram com seus leitos secos e os entornos, áridos e empedrados. As primeiras águas não deslizaram para aumentar o volume morto, no caminho foram sendo absorvidas pelo solo ressecado, sedento, rachado.

De repente, quando as beiradas começaram a ficar embebidas, impregnadas ou encharcadas, a sobra líquida começa a escorrer para o centro da represa e a aumentar o seu volume.

A Metáfora da Impregnação não foi detectada pelos radares das redações. Mesmo por que já não há redações suficientemente autônomas para perceber coletivamente a veloz fabricação de fenômenos e não apenas no âmbito da estiagem e da escassez.

Mudam as circunstâncias, fatos e efeitos se sucedem, realidades são alteradas e os espelhos – o sistema jornalístico – não os reflete ou não entende os seus sinais.

Palavra certa

Uma visita às megalivrarias do Rio e de São Paulo nesta temporada de festas & férias desvenda uma indústria editorial ágil, diversificada, robusta. O livro introduziu-se na lista dos presentes preferidos. Embora caro, agrada aos presenteadores como aos presenteados convertidos instantaneamente em seres interessantes.

Nos balcões uma profusão de lançamentos, títulos recentes, edições atraentes, belamente apresentadas. Ficção, não ficção, clássicos, poesia, atualidades, história, biografias, religião, política, denúncias, autoajuda, reportagem, livros para os que gostam de ler ou gostam apenas de folhear, cozinhar ou sonhar – uma festa em letra de forma.

Quem empurra essa gente para as livrarias – os cadernos de entretenimento dos jornalões? Seus raros críticos literários? A estratégia dos lançamentos maciços? As rasas resenhas escritas por gente que não leu o livro que recomenda? Os programas do tipo talk show? Os autores nas noites de autógrafos? Os opinionistas que preferem diferenciar-se citando e-books estrangeiros? Os “papos-cabeça” das entidades culturais?

O movimento das editoras e livrarias nunca é isolado, costuma fazer parte de um processo integrado que começa nas escolas, encorpa na família, se irradia através da imprensa, da academia, e retorna via mais livros, discos, publicações especializadas, teatro, música, museus, vídeos, cinema.

Pergunta: estamos diante de um momento singular, passageiro – um modismo, temporada? – ou engajados num autêntico movimento de busca e agregação de saberes? Mesmo sem dispor de um Jorge Luis Borges ou um Adolfo Bioy Casares, estamos aptos a incubar um filme como o argentino “Relatos Selvagens”, forte candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro?

A culpa não é de nossos roteiristas, cineastas ou dos mecanismos de incentivo ao cinema. A questão parece ambiental: ainda não estamos suficientemente encharcados, embebidos e impregnados de curiosidade intelectual para permitir um fluxo – hídrico ou cultural – regular.

Livro e livrarias são etapas de um processo. Mas imprensa é permanente, vital: para forçar avanços, questionar rumos, manter demandas, exigir. A mídia dita tradicional está perdendo uma preciosa oportunidade para retomar seu papel histórico, civilizador, ameaçada pela histeria apocalíptica que ela própria provocou.

Agarrada ao piloto-automático, incapaz de ajustes, marginalizada pela ânsia de sobreviver, esqueceu o sentido de certas palavras. Sustentação é uma delas.