O caso Mírian França é exemplar porque nele se reúnem algumas das formas de violência material e simbólica que costumam reger o tratamento dos negros e dos pobres pela justiça brasileira. Por outro lado, é exemplar também pela cobertura que recebeu da imprensa num primeiro momento e pelo modo como, em seguida, sofreu uma virada incisiva na consideração da mídia e da opinião pública, com um crescente questionamento dos procedimentos adotados pela polícia e pelo judiciário do Ceará. Uma das críticas mais contundentes foi o viés racista que parece ter estado presente em cada um das etapas, tanto nos procedimentos judiciais quanto no tratamento dado pela mídia.
O caso Mírian é exemplar, sobretudo por mostrar a força alcançada pela mídia alternativa no Brasil, e seu poder de abalar, em certas circunstâncias, o bloqueio da grande mídia. E, nessa direção, seu poder de injetar com muita velocidade pelos dutos que comunicam as redes, os movimentos, os fóruns, as comunidades, as mensagens que se originam dessas mesmas instâncias. Desse território mais evanescente, por sua vez, são emitidos sinais que obrigam a grande mídia a refazer sua narrativa inicial.
Em seus primeiros momentos, o caso Mírian segue uma dinâmica bastante trivial na mídia. Um crime hediondo ocorre num dos paraísos turísticos do Nordeste, no período da alta estação. A polícia se mobiliza e poucos dias depois prende uma suspeita que, segundo a delegada Patrícia Bezerra, apresentou “incontáveis contradições” no seu depoimento. Sem apontar nenhuma delas, a delegada julga-as suficiente para justificar o encarceramento. Mírian surge na mídia como a acompanhante de Gaia, a carioca, a suspeita, autora de inúmeras mentiras, a vilã apanhada em incontáveis contradições.
Estudante exemplar, autora de diversos trabalhos científicos, doutoranda da UFRJ na área de farmácia, pesquisadora de alto nível, jovem negra, batalhadora, responsável, amante das viagens, embora de recursos muito parcos ?, todas essas qualificações positivas estiveram ausentes do discurso inicial. Não mencionando que Mírian era negra, as matérias vinham ilustradas com fotos, feitas no momento da prisão, ou garimpadas no Google, que, junto com as legendas negativas, davam asas à suspeita contra a estudante.
Mulher de “má fama”
O discurso da delegada foi amplamente reproduzido nas matérias da TV Verdes Mares, da TV Diário, dos jornais O Povo e Tribuna do Nordeste, os maiores empresas da mídia do estado. Além da delegada falava também, e era amplamente divulgado, o coronel da PM Júlio Aquino, comandante do Comando de Policiamento do Interior (CPI) Norte, que já há alguns dias não se manifesta. Em síntese, a figura de Mírian foi sumariada como a “suspeita de matar a italiana Gaia Molinari”. Emblemática é a matéria de 30 de dezembro: “Suspeita de matar italiana no Ceará buscou companhia de viagem na web”. A matéria que apareceu na home nacional do G1, foi produzida pela equipe local do Ceará. Usando a imagem extraída de um post de Mírian no fórum de Mochileiros.com, do qual é membro, a matéria se constrói num misto de insinuações, versões da delegada, silêncios sobre a biografia de Mírian, e uma foto em que autoridades policiais do Ceará, numa coletiva de imprensa, declaram praticamente encerrado o caso, dando a ele chancela da máquina do estado e um carimbo de “arquive-se”.
A partir da notícia dessa coletiva, a situação assume um alto grau de cristalização. Dando o fato como estabelecido, com autoria definida, a regra de ouvir o outro lado é elidida, sequer entra no horizonte das considerações. Enfim, o caso está resolvido por uma firme, rápida e competente atuação da polícia do Ceará. Nesse momento se firma na mídia local e nacional a figura da “carioca”.
Essa segunda fase, apresenta nacionalmente Mírian França na imagem montada pela farsa jornalística da mídia tradicional do Ceará. A TV Verdes Mares, inaugurada em 1975, carro chefe da mídia cearense, pauta a visão nacional e internacional do caso e, em especial, como que detém direitos sobre a imagem de Mírian França, construída pelos artigos, editorias e reportagens de seu conglomerado. A imprensa nacional e internacional repete suas gags. A mais importante é o adjetivo colado à Mírian, “a carioca”. Esse termo tem desde muito um significado negativo no Nordeste. Durante o período em que a cidade do Rio de Janeiro foi o Distrito Federal, concentrando toda a diplomacia estrangeira, a burocracia pública do país, os políticos dos estados, suas famílias e seus assessores, “carioca” passou a significar mulher de má fama. Vida livre, emancipada, muita vezes “separada”, e até mesmo muito frequentemente associada à prostituição que corria solta na cidade, nos seus cassinos, teatros de revista, casas noturnas de todo gênero etc., as “cariocas” foi designação que veio substituir a geração dos anos 10 e 20 das polacas, cocotes, francesas, enfim, as designações prévias para “prostituta”.
Colaboração “eficiente”
Assim como, no imaginário social brasileiro, “mineiro” tem duas acepções complemente distintas, representando, por um lado, o matuto ingênuo que compra bonde no Rio, e por outro, o político astuto, extremamente prudente, que faz do silêncio e das meias palavras, uma arma muito afiada, igualmente, a palavra carioca representou, por um lado, um sentido de glamour, maior civilidade e savoir faire social, e, de outro, como o reverso desta, a imagem mais insinuada que dita, da mulher de vida fácil, a “sustentada”, da amasia, ou da prostituta. No Nordeste em especial, com o singular conservadorismo, o deslizamento de um significado para outro é fácil e rápido.
À Mírian, negra, acusada de assassinato, só poderia convir a acepção pejorativa de “carioca”. E não nos parece que, em nenhum momento, a construção dessa associação tenha se feito conscientemente. Exatamente isso é o mais perigoso, assim como o racismo mais eficaz é aquele mais inconsciente. A operação das categorias não tematizadas do preconceito, do “lugar comum” (ver Bourdieu, Sobre a televisão), é condições de eficiência da violência simbólica. O lugar comum, é, por assim dizer, o ponto arquimediano da informação sem atrito, em que corre fácil um seiva de cumplicidade entre os que ocupam uma instância de poder. Permitindo-nos aqui um trocadilho, trata-se de uma arquimediania conjugada por sua comum mediocridade.
A palavra-valise, que encerrou toda a trama das adjetivações criminalizadoras, foi encontrada e posta a trabalhar: “a carioca”. Entre 30 de dezembro e os primeiros dias de janeiro de 2015, o termo dominou nas manchetes sobre o caso, desde os jornais e folhas locais e pouco conhecidos, até os grandes portais nacionais. Vejamos alguns:
** “Carioca é presa por suspeita de homicídio”. 30/12/2014. O Povo (jornal de Fortaleza)
** “Carioca é presa sob suspeita de assassinar turista italiana no Ceará”. 28/12/2014. Agência O Globo.
** “Carioca é presa sob suspeita de assassinar turista italiana no Ceará”. Atualização bastante estendida de matéria publicada em 29/12/2014. Thays Lavor, jornal O Globo.
** “Turista Carioca Mirian França de Melo mentiu no depoimento sobre a morte de Gaia Molinari” – Diário do Nordeste (pertencente à Rede Verdes Mares), 29/12/2014
** “Polícia do Ceará pede quebra de sigilo de carioca suspeita de envolvimento em morte de italiana”. Thays Lavor, especial para O Globo. 30/12/2014
** “Polícia prende carioca por suspeita de ligação com assassinato de italiana”.
** “Polícia prende carioca por suspeita de ligação com assassinato de italiana”. 29/12/2014. Folha de S.Paulo.
** “Polícia prende turista carioca suspeita de matar italiana no Ceará”. 29/12/2014. Portal R7.
Após essa etapa, instalou-se um breve período de calmaria, sem novas matérias ou atualizações das anteriores. Enfim, pareceu que a pá de cal já havia sido lançada e que tudo transcorrera numa colaboração “eficiente” entre mídia e autoridade policial. Resolvido o crime, achado o culpado, desvendado, portanto, o mistério, o assunto se cede espaço aos novos temas que invadem a atenção pública. Contudo, em 1º de janeiro o Congresso em Foco publicou o artigo “Dúvidas sobre a prisão da jovem negra no Ceará”,
Contradições e indícios
O artigo pôs em questão, analisando os dados constantes nas matérias publicadas sobre o assunto, a própria necessidade da prisão. Listando um a um os pontos obscuros da investigação, os elementos incompatíveis e inverossímeis da versão da delegada, o artigo apontou, sem descartar em momento algum a possibilidade de Mírian França eventualmente poder ser a culpada, que nada de sólido havia sido apresentado ao público que justificasse a necessidade da prisão. Ao contrário, uma série de inconsistências, emergiu da consideração das reportagens já publicadas e declarações das autoridades públicas envolvidas.
Entre elas estavam os aspectos formais, em primeiro lugar: a ausência de defensor público, de prisão especial a que fazia jus a jovem por possuir curso superior, o fato de éter sido privada de comunicação com a família e, sobretudo, a falta de elementos minimamente consistentes para a decretação da prisão, quando a delegada dizia a “suspeita” caído em “incontáveis contradições” e mentido inúmeras vezes. Nada mais fácil então, argumenta o artigo, que a delegada apresenta apenas um dessas contradições, o que não deixaria pairar dúvidas sobre os procedimentos. Ao invés disso, a delegada se fixava no aspecto exterior e moral do assunto, repetindo sempre que Mírian França. Como se veio a saber depois, sua confrontação, que parece a única que foi realizada, foi com um italiano (que não foi indiciado, apresentado como suspeito, nem fotografado, e muito menos teve o nome divulgado, tudo para não atrapalhar as investigações). E os tópicos versavam sobre aspectos superficiais.
Como se veio a saber mais tarde, com os desdobramentos do caso, a acareação que resultou na suspeição de Mírian foi feita com um turista italiano e versava sobre coisas insignificantes para determinarem o cerceamento de liberdade. Como se posicionou a defensoria, em matéria púbica em O Povo, apenas no dia 08 de janeiro (“Suspeita assina declaração de compromisso”): “Eles divergiram sobre, por exemplo, quantas vezes a Gaia teria tomado café com uma pessoa. Mas isso não é suficiente para que ela seja suspeita. Nada leva a crer, ainda que de forma dedutiva, que ela esteja envolvida no crime”, concluiu.
Contradições dessa natureza, que não têm força significativa, e que, por isso, poderiam depois tanto contra um lado contra o outro, foram consideradas indícios suficientes para a prisão de Mírian, mas não para a do italiano.
Uma nova opinião pública
A repercussão alcançada pelo artigo no Congresso em Foco, a partir do dia primeiro, teve como seu cenário principal as redes sociais, os movimentos sociais, as mídias alternativas, os fóruns e comunidades. Estas, por sua vez, se mobilizaram para garantir a ampliação dos acessos ao artigo nas redes. No site, o artigo teve 2,6 mil curtidas, com 7.462 visualizações e figurou entre as matérias mais comentada da semana e uma das mais comentadas do mês, desde o dia 03, até hoje 09 de janeiro. Dentre as iniciativas que contribuíram para a ampla divulgação do artigo, temos as seguintes entre as mais importantes:
>> Post no Facebook alertando para a situação (9.431 compartilhamentos)
>> Post da coordenadora da ONG Criola – Jurema Werneck, com texto do professor Bajonas – 02 jan. 10:45. https://www.facebook.com/jurema.werneck/posts/754669814618362:0
>> Liberdade para Mírian França (7.045 membros) – https://www.facebook.com/liberdadeparamirian/info?tab=page–info
>> Ato pela libertação de Mírian França – programado para 13 de janeiro, às 17:00hs, na Cinelândia
>> Página de Ato Convocado na REDE – (6.5 mil confirmaram e 31 mil foram convidados) – https://www.facebook.com/events/1541526549436470/?ref=3&ref–newsfeed–story–type=regular
>> Ato pela liberdade de Mírian (847 presenças e 4,2 mil convidados)
– O ato ocorrerá no dia 13 de jan. na Cinelândia https://www.facebook.com/events/752533321504975/?ref–newsfeed–story–type=regular
>> Petição Pública pela Libertação de Mírian França (2.181 assinaturas) – http://www.peticaopublica.com.br/psign.aspx?pi=BR78437
>> O inferno de Mírian e o céu de Eike e Guilherme (73.700 pessoas atingidas até 7 de janeiro). Artigo no Congresso em Focodo professor Bajonas 06 janeiro as 10:30hs
Uma qualificação da mobilização, posse ser medida pelas entidades do movimento social e negro que se juntaram para promover ações pela liberdade de Mírian França. Mais de três dezenas de entendidas reconhecidas nas lutas sociais no país, além de representantes políticos, assinaram a Nota pública de apoio a Mírian Leite.
Enquanto crescia essa intensa mobilização social, verificou-se uma tendência acentuada de revisão pela grande mídia, nacional e internacional, de rever a aceitação inicial do envolvimento de Mírian França. Ao mesmo tempo, Mírian deixou de ser a “acompanhante de Gaia”, “a suspeita”, “a carioca”, e passou a ser apresentada como a jovem negra, a estudante, a doutoranda. O perigo do preconceito passou a ser apresentado já nos títulos das reportagens, que trazem então uma narrativa em conflito aberto com a versão anterior disseminada a partir de Fortaleza. Com chamada na home, sob o título “É fácil culpar a ‘neguinha’, diz mãe de presa após morte de italiana”, o UOL trouxe a reportagem assinada por Bruna Fantti no dia 3 de janeiro.
A matéria desfaz o caráter abstrato em que, até o artigo do Congresso em Foco, vinha configurada a imagem de Mírian. Agora ela aparece como estudante de doutorado, filha e orientanda, três vértices que constituem a vida de todos os dias. Além disso, mostra-se o repúdio contundente da parte dos que a conhecem com a possibilidade de, pela sua índole, ser capaz de praticar algum crime. Essa mudança de tom, conteúdo, e adjetivação relativas a Mírian, assim como a indicação de possível intromissão de racismo, sexismo e interesses locais envolvidos, tornam as abordagens muito mais críticas. Assim, o artigo “Casal de estrangeiros é detido e levado para depor sobre a morte de italiana”, publicado em O Globo (6/01), trouxe revelações muito importantes de um turista uruguaio que narrou o que chamou de “jornada surreal”, sofrendo uma série de pressões para prestar um depoimento incriminador contra Gaia. Procurada, a polícia cearense não se pronunciou. Muitas outras matérias poderiam ser citadas, mas estas, de dois dos maiores portais brasileiros, já são suficientemente ilustrativas.
No mesmo momento em que os estrangeiros davam versões divergentes daquelas da mídia local, a imprensa internacional trouxe artigos muito questionadores sob todos os aspectos do caso. Em especial, o artigo de El País “Críticas à polícia no caso da italiana assassinada em Jericoacoara”, assinado por Pedro Cifuentes, com data de 7 de janeiro. O artigo detalha os diversos pontos cegos deixados pela investigação policial, reforçando as dúvidas existentes.
Esta reversão, ao que parece, conduziu a um enrijecimento desconcertante da imprensa do Ceará frente a uma suposta onda anticearense, o que não é o caso, uma vez que os comentários das matérias na mídia local, mostra que apoio a Mirian vem dos próprios cearenses, a maioria brancos. Enfim, não se trata de uma comunidade de parentes e amigos, ou do movimento negro agindo isoladamente, mas de um amplo espectro da opinião pública que reconhece a intervenção do racismo nas práticas policiais e judiciárias brasileiras.
Um editorial do jornal O Povo do dia 7, “Golpe no turismo do Ceará”, assume um ar marcial fazendo crer que o Ceará defronta uma espécie de cruzada contra as suas instituições: “Tanto a delegada quanto o Judiciário não podem se intimidar por este tipo de pressão. A investigação precisa ser absolutamente técnica e não se submeter a qualquer tipo de patrulha.”
Noutra matéria, da TV Diário, emissora do grupo Verdes Mares, surpreende-nos a seguinte chamada: “Carioca suspeita de morte de Gaia teria um relacionamento com a italiana”. Aqui tem-se em uma linha quase todos os estigmas lançados deste o dia 26 de dezembro contra Mirian, com o acrescimento de ilação caluniosa, que contraria frontalmente a vídeo-entrevista em que o uruguaio nega com veemência o fato. Numa grotesca farsa de edição de vídeo, se faz o turista afirmar que “Gaia e Mírian eram amantes”, quando a frase dele diz que queriam que confirmasse que “Gaia e Mírian eram amantes”, o que não aceitara fazer.
Esse movimento regressivo, com a exumação de práticas totalmente inaceitáveis na atualidade, parece indicar uma dificuldade do poder público e da imprensa local de assumirem eventuais erros, e buscarem a formas de repará-los. O Estado, as instituições, não estão acima dos erros. Para isso deveriam ser sobre-humanas. Quando o juiz de plantão se nega a decidir sobre o habeas corpus de Mírian, e posterga a decisão, enviando-a ao juiz competente, que, por acaso, é ele mesmo, procedimento que permitirá apreciar o pedido quando bem lhe aprouver, e não com a urgência que deve ser dada no regime de plantão, ou quando a Defensoria Pública do Ceará dissolve a força-tarefa que havia formado para defender Mírian França, e que foi apresentada, numa coletiva de imprensa, com pompa, fanfarras e circunstância, mas cuja vida inútil, digamos assim, foi de apenas 3 dias; quando o defensor público é ameaçado na sua integridade física, como ocorreu ontem, 08 de janeiro, deparamos com uma espécie de gesto defensivo primário de um estado que, como uma personalidade que só conhece o grito autoritário, se enrijece em uma contração de cólera, apoplética, assim que diante dele se ergue a menor contestação. O Estado é uma esfera superior de ordenação dos interesses sociais, em que os diversos agentes estabelecem demandas e conflitos mediados pela lei. Sobretudo é assim no estado democrático de direito. Neste, o diálogo com as demandas da opinião pública é coisa normal e corriqueira.
É possível, senão provável, que as sequelas públicas deixadas pela mobilização em torno da prisão de Mirian indiquem a ascensão de uma nova opinião pública no Brasil, mais complexa e arguta que aquela que tem historicamente predominado. Se for assim, o porvir do caso pode desdobrar ainda acontecimentos inusitados e atitudes da mídia dignas de nota para compreender o que vai pelo país hoje.
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Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, professor universitário e escritor