Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O rifle AK 47 reescreveu as regras da guerra moderna

Kalašnjikov, letra do album Underground, 2000, do cantor pop sérvio Goran Bregovic. [Disponível no youtube. Bregovic compôs varias trilhas sonoras dos filmes do cineasta sérvio Emir Kusturica]

Bang, bang, Senhor, ninguém conta os tiros, meu!

Bang, bang, vamos nessa. Ninguém manera a porrada, meu!

 

Vai fundo, vamos zoar, é agora mesmo

Não encana, é limpeza, vamos desenterrar um ao outro

Mete bronca, já que ninguém por aqui

Encara, cara, uma Kalash novinha em folha

 

Bang, bang vamos fazer um matador é uma pechincha

Eu sou o bam bam bam, você é o rei da parada, vamos garantir o esquema

Não tem mutreta, aqui é só lance de macho.

Acerta ele na cabeça, acerta

Pega o martelo e mete um prego nele, fura ele

Puxa o gatilho e arromba ele, arromba.

 Bang bang

 

Ela lhe é familiar, muito mais do que supõe. Como imagem, sua convivência com ela é praticamente diária. Onipresente no noticiário internacional –TVs, sites, fotos em jornais. Você a vê e revê repetidas vezes, sem sequer notá-la, pois ela é apenas um adorno da notícia. Inconfundível, porém: aquele carregador curvelíneo, que a distingue da maioria dos rifles de assalto. A vírgula letal.

A AK47, com a qual você se defronta, virtualmente, com a mesma frequência com que assiste a partidas de futebol, é mais conhecida como Kalash. O apelido carinhoso pegou tanto que o jornal Le Monde noticiou, recentemente, que em Marseille (especial, mas não exclusivamente), a rapaziada usa T-shirts impressas com ela (logo,logo, substituirá o ícone Che), e o verbo “kalacher” é sinônimo de estar enturmado em alguma gangue adolescente prestigiosa. Em Moscou, no maior parquinho de diversões para crianças, Kalashs de plástico disputam com ursinhos de pelúcia e Mickey Mouses a honra de brinde para o vencedor do jogo. Menos divulgado, e mais sintomático, é o fato de vários meninos na África terem sido batizados com este prenome.

Sim, ela é pop. Sim, é a máquina de matar mais eficaz na história da humanidade . Uma arma que, às vésperas de seu 67@ aniversário, extermina cerca de um quarto de milhão de pessoas por ano, em todos os cantos do globo. [A principal fonte destas informações é o documento Weaponomics: The Global Market For Assault Rifles, de autoria de Phillip Killicoat, Department of Economics, Oxford University, 2007] Em toda sua modéstia tecnológica, barata e onipresente, ela (e não aquelas das instalações nucleares) é a verdadeira arma de destruição em massa.

Inventada em 1945 por um pacato engenheiro militar, o tenente Mikhail Kalashnikov (morto em dezembro de 2013) [Em entrevista ao jornalista C. J. Chivers, no New York Times, Mikhail lamentava enfática e aparentemente sinceramente, o atual ‘descontrole de distribuição’ de sua invenção, afirmando que havia criado um mecanismo de ‘defesa’, não de massacre], para salvar a mãe Rússia das hordas alemãs na 2 ª Guerra Mundial, a AK-47 foi aperfeiçoada em 1947 e adotada pelo Exercito Sovietico em 1948. Quando a ‘Avtomat Kalashnikov’ foi concebida, era para servir a um novo tipo de guerra, que dizimava de outro modo, diferente das baionetas e trincheiras da Primeira Guerra Mundial – a Frente Oriental (soviética) foi uma batalha sangrenta que contabilizou 5 milhões de mortos alemães e mais de 10 milhões de mortos soviéticos. Mikhail Kalashnikov queria criar um rifle que combinasse a leveza do Sturmgewehr alemão, rápido e automático, mas que fosse também barato de fabricar, e fácil de manejar.

Nasceu democrática e communard: como uma arma do povo para o povo, capaz de funcionar em quaisquer mãos, e com alto grau de tolerancia: em ambientes gelados (URSS), úmidos (como o Vietnã), desérticos (como várias regiões africanas e a Àsia Central), incólume a chuva, lama ou deserto. A Kalash pode ser enterrada na areia por anos a fio, desencavada, e mal precisa de limpeza para começar a disparar. Idem em pântanos: ela sai da água como um anfíbio perfeito, tinindo para cumprir sua tarefa.

Há uma virtude proteica na Kalash (o Proteu da mitologia, deus marinho, filho de Poseídon, podia mudar de forma à sua vontade) que a torna a Número Um. Sua incomparável resistência, facilidade de manejo e longevidade dão-lhe uma olímpica superioridade, sem competidores à altura, mesmo sendo humilde (para quem ainda identifica superioridade com sofisticação).

Ser simples tem suas vantagens. Sabe-se que transações ilícitas ou ilegais tem muito mais liquidez no mercado. È assim que supostos grupos rebeldes obtém armas de fornecedores, digamos, independentes, e casam à perfeição oferta e demanda. Nos anos 80, a CIA (United States Central Intelligence Agency), comprou um bocado de AKs fabricadas na China (alguns milhões de dólares) para equipar os mujahedin do Afganistão, mujahedins esses liderados por Osama Bin Laden (então um aliado dos estadunidenses contra o perigo vermelho) em sua jihad contra a presença soviética no país [Weaponomics: The Global Market For Assault Rifles,Phillip Killicoat, Department of Economics, Oxford University, 2007] .

Levantamentos da Anistia Internacional e Oxfam [Amnesty International e Oxfam, ‘Control Arms Briefing Notes’, 2006] anuem que é difícil estabelecer estatísticas precisas, sobretudo porque a Kalash é majoritariamente traficada no mercado clandestino. Mas concordam também que este comércio ilícito de armas, esta incontável capacidade de produzi-las e disseminá-las, é irreversível – a China, hoje (como em tudo, aliás,vide bolsas Louis Vuitton) é a campeã de fabricação, sem patente, de AKs.

Variantes da Kalash, sem copyright, são atualmente fabricadas ao menos em 14 paises: Albania, Bulgaria, China, Alemanha, Egito, Hungria, Siria, India, Iraque, Coreia do Norte, Polonia, Romênia, Servia e na enfezada Russia (que perdeu o controle da patente). A tecnologia para confeccionar uma Kalash é tão simples que incentiva não só a cobiça como a criatividade: versões diferenciadas estão sendo manufaturadas em Israel, Africa do Sul e Finlandia. São o finlandês Sako M62, o israelense M76, e o sul-africano R4. Mais do mesmo, e algum detalhe perfunctório.

Mas foi só em 1956 que a Kalash começou a delinear os contornos definitivos de sua personalidade futura, a de artefato sob medida para o vale-tudo da barbárie. Engatinhou sua nova persona quando Khrushchev despachou o Exército Vermelho para reprimir o levante pró-democracia em Budapeste, Hungria, em que 50.000 húngaros morreram.
Nos anos da Guerra Fria, ela se tornou o maior presente da Rússia a seus afilhados ou apadrinhados. Só se falava, então, em guerra atômica, mas sempre se soube (nos bastidores, locus decisório) que o extermínio mútuo não interessava a ninguém. Daí a retórica e cosmética definição, “guerra dissuasiva”. Na época em que o macarthismo imperava, deblaterando malucamente que algum outro maluco apertaria o botão da solução final (eufemismo nazista referente ao extermínio de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, testemunhas de Jeová, partisans e outros inimigos do Reich), a vida vicejava em seu indiferente realismo, espalhando soluções locais (extermínio de alguns por alguns outros) por todos os continentes.

Em termos de realpolitik, cada uma das superpotências passou a fornecer sorrateiramente sem patente, armas mais convencionais a seus amigos e aliados. No caso da URSS, socialismo de fachada oblige, liberou-se o copyright da AK para países como a China (hoje, a maior produtora de AKs) e a Alemanha Oriental. Justiça seja feita, os autointitulados comunistas foram bem mais solícitos e generosos. Este é o ponto de inflexão, a gestação da nova persona que chegou às T-shirts: o fuzil de assalto AK (dos 500 milhões de armas de fogo em todo o mundo, cerca de 100 milhões pertencem à família Kalashnikov) era grátis, portanto uma escolha óbvia.

Parteira da história

Se retrocedermos à história da Kalash, constataremos que, curiosamente, ela é um dos mais ambivalentes ícones, que deixaria atordoados maniqueístas e puristas, e regalaria cínicos e céticos: inicialmente, ela foi sinonimo da luta do pequeno contra o grande, do oprimido contra o opressor, de David contra Golias; passaporte de defesa dos colonizados contra os colonizadores (durante a Guerra Fria, os primórdios da defesa palestina, a resistencia contra os europeus na Africa), para se transmutar, atualmente, no emblema do genocídio, no gatilho à disposição de psicopatas, fundamentalistas e tiranos de todos os naipes, onipresente nas matanças contemporâneas, da Siria à Chechenia a Uganda, á República Centro-Africana, ao Iraque, a uma lista dolorosamente interminável.

Pois, décadas atrás, a Kalash soava a Che Guevara e idealismo, aos intrépidos combatentes das lutas de libertação terceiro-mundistas, á resistência popular. Está desenhada na bandeira de Moçambique, após a vitória contra os colonialistas portugueses. È o emblema do Timor Leste. Era inseparável de Yasser Arafat e sua causa, então aplaudida, de pé, em plenário da ONU. Decora a bandeira do Hammas (lembremos, um grupo legitimamente eleito pelos cidadãos da Faixa de Gaza em sufrágio democrático). Mais: a Kalash foi um dos pontos de inflexão da vitória dos resilientes, pequeninos (isto é, modestos em altura) vietnamitas contra o maior poderio militar do mundo, os EUA.

A história do último capítulo da guerra na Indochina ilustra bem a face aparentemente benigna da AK, primeiro ato de uma tragédia que degenerou em retorno do mesmo (horror), e cujo desfecho está longe de ocorrer . No Vietnã, os rifles americanos M-16 travavam na umidade da selva, e as tropas estadunidenses foram aconselhadas a recolher as AKs dos cadáveres abatidos, e escantear seu requintado equipamento, contando com a maior eficácia do legado inimigo. Bizarrro? Apenas pragmático.

O Vietnã foi um marco histórico, político e geo-político, (amnésico na doutrina Bush, dando no que deu), tanto quanto foi um marco para a industria bélica. Quando por lá, nos idos de 60 os norte-americanos descobriram ser preferível aposentar seu armamento high-tech, cuja vida util periclitava facil, já que a arma padrão dos vietnamitas, dura de roer, não precisava de reposição.

A Kalash começava a virar lenda, e gerar temor e respeito: todo o poder e dinheiro dos Estados Unidos não conseguia idealizar uma arma mais eficaz que o ordinário rifle de vírgula. O M-16, rifle de assalto estadunidense, certamente tinha mais acurácia, mais precisão. A Kalash era, e é, imprecisa, desengonçada, insegura para seu portador, e exatamente por isso absolutamente perfeita para o trabalho. Podia ser tecnicamente inferior, mas o X da questão, na guerra contemporânea, nunca foi precisão (como numa competiçãode amadores), e sim a capacidade de destruição.

Que aquela guerra (e outras) provam que o poderio economico, bélico e político não são a mãe da vitória, é o curioso dado dos túneis Cu-Chi. Os Cù Chi Tunnels –cavados com pá de plantar arroz, com três andares subterrâneos, e que, além de quartel general dos vietnamitas, eram providos de um hospital e instalações para as famílias, inclusive uma escola para as crianças– ficavam a poucos quilometros da base militar americana em Saigon. Os invasores, que nunca souberam muito bem como localizá-los, perceberam que pisavam no fio da navalha. A qualquer momento, o mais bem equipado batalhão americano podia se deparar com a armadilha de um pelotão brancaleônico surgido das entranhas da terra, cujas armas não precisavam nem mirar direito, só descarregar para todo lado (com a vantagem de serem mais fáceis de recarregar), e pô-los a correr.

Outros tempos, aqueles. Hoje, a Kalash da Távola Redonda, empunhada por Sires Galahads, tornou-se o primeiro dos Cavaleiros do Apocalipse.

A Kalash agora recende a Taleban, a Al Qaeda, a Charles Taylor e ao genocídio Libéria-Serra Leoa, ao aterrador Califado Islâmico (ISIS, ou ISIL, ou Estado Islâmico, cujo vandalismo e banditismo ímpares os tornou personna non grata até para a Al Qaeda!), ao psicopata ugandense Kony e sua auto-visão de Espírito Santo designado a reabilitar os 10 Mandamentos, aos endêmicos genocídios e estupros na Àfrica e Bálcãs (muito antes de Angelina Jolie glamurizar o tema, a ONU adotou uma norma que considera o estupro não mais como um dano colateral, mas como uma arma de guerra em si, tamanha é sua incidência nos conflitos atuais. http://www.ohchr.org/en/newsevents/pages/rapeweaponwar.aspx,), a predileta no tráfico dos diamantes de sangue, à preferida na corriqueira prática de seqüestro de crianças para submetê-las a lavagem cerebral e torná-las assassinos mirins (o psicopata Kony, líder da Lord’s Resistence Army, lhes dá uma beberagem alucinógena que lhes promete invunerabilidade e os põem na linha de frente de assalto, tornando-os os primeiros a serem dizimados) . Campeão, num universo pontilhado de monstros e algozes, há décadas indiciado por crimes contra a humanidade pela ICC (International Criminal Court), Joseph Kony entre 1986 e 2008, raptou 66 mil crianças para servirem como combatentes mirins ou escravos sexuais, e causou o exílio, ou deslocamento forçado, de 2 milhões de pessoas. Sua tática de persuasão: a imbatível Kalash.

Armas convencionais destronaram de vez o pânico de uma guerra nuclear. A crise da Ucrânia no primeiro semestre de 2014, vide pronunciamentos inflamados de Angela Merkel e Barak Obama (que retoricamente acusou Vladimir Putin de reacender a “mentalidade de guerra fria”) e de Gorbachov, mais recentemente, recolocaram em pauta, mas como paródia, o grande medo dos idos da Guerra Fria: uma guerra nuclear.

Porém, o pesadelo de um Dr. Strangelove (protagonista tragicômico do filme de Stanley Kubrick), paranoicamente apertando um botão e implodindo a face da Terra, este pesadelo já era. Não só porque o recente flerte entre os governos dos EUA e Irã dissolveu os derradeiros receios (mais propagandísticos que fáticos) de escaramuças dissuasivas, mas, sobretudo, porque a guerra mudou completamente de figura com a entrada em cena do ato II da Kalash (que inclusive economiza idas e vindas de inspeções nucleares).

O século XXI muitos profetizam, será a crônica já anunciada em finais do XX: a proliferação ad infinitum de guerras locais, étnicas, religiosas, sectárias, tribais, de confrontos higienicamente encapsulados e exponencialmente mortíferos, de embates de “nacionalismos de edícula”– é neste solo propício que se edifica a globalização, inclusive dos interesses da indústria bélica (para onde mandar o refugo armamentista de guerras já findas?).

Nos confrontos do século XXI, o simples, barato e disponível ganha longe do caro e complicado. A arma ideal, paradoxalmente, é a mais a simplória: tosca, barata, obstinadamente resiliente e, acima de tudo, democrática. O mais democrático modo de matar. Pois cliente morto não paga, e a reposição da clientela é crucial para amamentar a história, cujo palco, como dizia o filósofo Hegel, reza na cartilha de que “a guerra é a parteira da história”. A Kalash tem certificado de garantia para esta escatologia hegeliana: permite que se mantenha, retome ou troque de cliente, mas a contabilidade, que é o que interessa, estará sempre garantida.

Longe da savana

Como a Kalash pode ser comprada em qualquer bazar no Paquistão, Somália,Congo e etc (outra lista melancolicamente interminável), seu preço é exeqüível, mas varia muito, e esta flutuação é o melhor indicador de que o genocídio vai começar. Em tempos de calmaria, a AK é uma pechincha: 10 ou 15 dólares, ou pode ser trocada por um saco de milho. Quando a carnificina começa, a lei da oferta e procura prospera, e ela se torna mais cara, talvez não tanto quanto a CIA gastou para armar o séquito de Bin Laden, nos idos em que eram aliados contra os soviéticos, mas certamente ainda a mais barata do mundo.

Lucros perpétuos só podem provir de guerras perpétuas –portanto, as guerras convencionais, que mantém e repõem uma clientela residual cativa. Quanto mais as guerras reproduzirem conflagrações contínuas, reprisando uma dolorosa e interminável devastação, e indizível dor para a população civil (a verdadeira vítima), tanto mais está tranquilamente assegurado o perpétuo lucro para o complexo industrial-militar (para citar apenas o mais visível beneficiado), em que interesses governamentais e privados muitas vezes coabitam em promíscua emulação.

Um singelo exemplo desta simbiose feliz de interesses públicos e privados pode ser entrevisto na guerra do Iraque, na qual o então vice-presidente Dick Cheney (2001-2009), mal egresso de seu posto como CEO da Halliburton (1995-2000), contemplou a própria Halliburton (sem licitação, e da qual nem estava divorciado, pois manteve suas ações e dividendos), com a iguaria de premiá-la como a empresa que monopolizou (de novo, sem licitação) todos os contratos de reconstrução do Iraque .Note-se, a falta de licitação permitiu que a Halliburton ganhasse bilhões, e saísse do Iraque sem sequer terminar uma ponte de uma margem à outra do rio. Ou hospital. Nem mesmo um hotel com barmen peritos em martinis para a imprensa internacional.

Mas abandonemos as esferas mais escarpadas dos intocáveis, aterrissando na cidadania da guerra, na guerra como ela é, e sua inescapável e imbatível AK.A milícia mais mal treinada do mundo pode se tornar a melhor, se munida de AKs, tamanha é a facilidade de seu manejo, sua confiabilidade, sua resiliência ao tempo e intempéries. Seu êxito, repetimos, consiste na nova conformação das guerras no século XXI, em que, sibilinamente, a meta é a democratização da morte, nestas ‘guerras de edícula’, nas quais o atirador, muitos deles soldados-crianças sequestrados, é tão dispensável quanto o alvo inimigo.

Além de ser responsável por mais mortes do que qualquer outro modelo individual de arma na história humana, a Kalash decididamente interferiu na própria concepção de guerra, batendo continência em tantos e tão multifacetados conflitos (pode-se arriscar dizer, na maioria deles) que nem mesmo os assépticos e high tech drones são páreo para ela.

Na guerra de agora, que continua a ser (como no Vietnã), de homens contra homens, não de uma máquina contra a humanidade, a Kalash é aquela reasseguradora vantagem competitiva, que permite a perpetuação do morticínio, e dos lucros. Ela equipa grupos malajambrados, fanáticos, malucos ou desesperados, a serviço de um xadrez de potências por detrás que mal sujam as mãos, e permite-lhes vencer, talvez não uma vitória pontual, mas estratégica –a perpetuação da devastação e e a reposição dos lucros. A inacurácia da Kalash é tremenda vantagem neste novo teatro da guerra; se cada tiro pode ter um alcance menos certeiro, não interessa. Vale a quantidade de tiros abatendo mais gente, e demandando mais armas para abater os abatedores. O círculo virtuoso. Cliente morto, cliente posto.

A AK é, portanto –além de ser a escolha dos tiranos e o must das T-shirts das gangues– tornouse também a arma do homem comum acossado. Inclusive do cidadão indignado de boas intenções – do arquiteto, sapateiro, dentista, comerciante, estudante antes despolitizado da Siria, hoje forçado, para defender-se do genocidio, a empunhá-la, para resistir simultaneamente às milícias de Assad e às milicias jihadistas anti-Assad.

Mais que mera arma, a Kalash está se tornando uma pedagogia dos novos tempos, em que, ironicamente, as redes sociais contribuiram para divulgar abusos, excrescências, tiranias, e resultaram, muitas vezes, em anárquicas e sentimentais escolhas. Kalash, modo de usar: ensinar rápido o sujeito antes pacato e indiferente a tornar-se um matador, e, se desesperado, candidato a futuro mártir. Com ela, e graças a ela (e não a mirabolantes utopias discursadas do alto, e, vimos neste século, derrotadas no solo), a igualdade, paradoxalmente, teve finalmente a sua vez.

Como sonhariam os socialistas fabianos, a comunidade das finanças teve que ceder e se adaptar, perdendo apenas os anéis. A Kalash é o supra-sumo do ideal igualitário pois equivale quem mata e quem morre: criou uma modalidade de conflito no qual todos são dispensáveis, dos snipers dos esquadrões de extermínio às inocentes vítimas civis.

Tão poderosamente ubíqua é a Kalash que ela já penetrou, bem longe da selva, savana e das gangues européias adolescentes, nos jantares elegantes de uma Park Avenue, por exemplo.

Luz acesa

Além de pop, a Kalash é cult e chique. Um jantar politicamente correto da Park Avenue pode ser regado a Vodka marca Kalash (mais cara que a Stolichanaya Premium) e as mesas de canto do anfitrião serem decoradas por luminárias Kalash do renomado designer Philippe Starck (a base, estilizada, imita a arma), uma peça que poucos podem se dar ao luxo decomprar, de tão cara. A anfitriã, para completar, poderia exibir brincos (pendentes de ouro ou prata) em formato Kalash, vendidos bem salgado por algumas ONGs bem humanitárias.

O Gênio, definitivamente, saiu da garrafa. Lá onde esteja, Paris,Allepo, Mogadishu ou Park Avenue, ele sorri deleitado com a devoção ao seu brilho – seja este faísca de disparo letal ou penumbra aconchegadora de abajuesr.

 O Gênio se esbalda, com a luz acesa em seu nome.

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Marilia Fiorillo é doutora em História Social pela FFLCH- USP, com pós-doc em Análise do Discurso pela Pompeo Fabra University e professora de filosofia e ciência política na ECA-USP; foi editora de política internacional da revista IstoÉ