Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Charlie’ também aqui

A tragédia recente em Paris obriga a pensar no fanatismo mórbido. Sua onda expansiva, com engrenagem simples e linear, propaga-se como chama em palha seca e chega ao que chegou nas chacinas do Charlie Hebdo e do mercado judaico da capital francesa. Seu nascedouro é a cegueira deformante do “pensamento único” e, por isso, mata, como se a matança fosse festim divino. É o oposto do humanismo. Em vez de criar ou construir no cotidiano (para que todos usufruam o novo e a vida se renove no tempo), destrói, como se o ódio estivesse acima da própria vida.

Por esse caminho, a “teologia do terror” dos tais “fundamentalistas islâmicos” soterra os fundamentos de todas as filosofias ou religiões, incluído o próprio Islã. Depois de matar, entregam-se eles próprios à morte, no ilusório fanatismo de que serão “mártires” e, no Paraíso, usufruirão do hímen de 70 mil virgens, como diz o Corão.

Esse fanatismo religioso esconde, também, a repressão amorosa e erótica vigente no mundo islâmico. Numa sociedade machista, de casamentos arranjados e sem amor, a beleza do erotismo e do desejo fica inconscientemente confinada à “vida após a morte”, numa cega interpretação da metáfora do Livro Sagrado. E matar passa a ser o primeiro degrau para ser morto e, assim, se tornar “mártir” para, em seguida, reviver desnudo num imenso harém num motel eterno no céu…

Na França e em toda a Europa, milhões de muçulmanos imigrados do mundo árabe sofreram um choque cultural profundo. A tradução literal de “Islã” é “obediência” e, assim, habituados à tradição do “obedecer” (em que tudo se circunscreve ao Profeta), desconheciam a sociedade que assegura o direito de dissentir e opinar livremente. Nela, sentiram-se órfãos, sem tutores e sem bússola. As dificuldades materiais e a fome os levaram à Europa. Imigraram em busca de trabalho e no trabalho são europeus. Mas na rua as mulheres usam véu ou escondem o rosto sob a burca, demonstrando que vivem interiormente em outro mundo. De fato, não se adaptaram à Europa. Ao contrário, a Europa teve de adaptar-se a eles. Agora, porém, uma parte deles busca mudar o estilo de vida da sociedade que os acolheu.

“Verdade única”

O nó górdio da tragédia do Charlie Hebdo não é o ultraje à liberdade de expressão. O problema brutal é o significado como mudança do estilo de vida, do comportamento e dos hábitos de uma sociedade que apontou ao mundo a tolerância e o diálogo como direito inerente à vida diária.

E se a contradição levar a Europa ao labirinto escuro da luta xenofóbica, em que cada ato – seja desmando, repressão ou defesa – se multiplique em si mesmo, em ambos os lados? O choque de culturas torna agudos os conflitos, atropela e embrutece ainda mais o fanatismo religioso fundado na “verdade única”. E sair de um labirinto é mil vezes mais difícil do que entrar. Nisso consistem a tragédia e o desafio.

No Brasil, nossos fanáticos mórbidos são de outro tipo. Não usam fuzis Kalashnikov nem invocam a Alá, mas continuam a viver na cegueira do “pensamento único”, saudosos dos tempos em que só se permitia pensar e agir segundo as normas da cartilha do poder ditatorial.

Dias atrás, completaram-se 30 anos da escolha de Tancredo Neves para a Presidência da República, que abriu caminho à redemocratização e à retomada da liberdade na sociedade brasileira, iniciada no governo do general João Figueiredo. Sabemos o que veio depois, de bem e de mal, e não o repetirei. A verdade, porém, é que o golpe de 1964 nos conduziu a um escuro labirinto do qual levamos 21 anos para achar a saída. E, ao encontrá-la, estávamos tão desabituados à luz do sol que a claridade do livre debate cegou a muitos. Quando se está no escuro ou de olhos fechados, a luz feérica nos faz cegos e voltamos a ver com dificuldade. Assim, nestes 30 anos nos salvamos da cegueira, mas nos tornamos míopes.

Enxergamos pela metade ao conhecer os escândalos de corrupção no poder público, sem perceber que se tornaram um estilo de governar sustentado pelo conluio entre políticos, a alta burocracia e grandes empresários. E o tripé se forma para que eles se tornem, por sua vez, beneficiários diretos da engrenagem que corrompem. Míopes, vimos e ouvimos aqueles torturadores dos tempos da ditadura contarem à Comissão Nacional da Verdade como seviciavam, matavam e, logo, faziam desaparecer os corpos dos opositores em fornos de usinas ou em alto-mar. Orgulhosos, diziam “cumprir ordens”, repetindo palavras de Eichmann ao tribunal que o julgou pelo Holocausto. Ouvimos, arrepiados, o blá-blá-blá macabro, sem entender que a violência atual nas metrópoles ou no interior é engendrada pela vulgaridade e, assim, maneja toda a sociedade.

Os modernos instrumentos de comunicação – televisão, videojogos ou internet – se ocupam em vulgarizar o estilo de vida. Os games infantis são disputas em que se mata, se persegue e se foge. O primitivo tum-tum-tum da “nova música” tem letras grotescas ou pornográficas. O subliminal ensina a violência, nunca a ser solidário.

O fanatismo é cego e se nutre da simulação. Nos 30 anos pós-Tancredo, não nos desvencilhamos da simulação implantada pela ditadura. Num tempo em que os abismos sociais cresciam, o “crescimento do país” era o crescimento do tumor da dívida pública. Lá começou o gigantesco endividamento externo e interno do qual não nos livramos até hoje. Neste 2015, o orçamento federal reservará 1 trilhão e 400 bilhões de reais tão só para juros e amortizações da dívida pública. A soma corresponde a 46% de tudo o que os escorchantes impostos arrecadarão.

Os grandes bancos tornaram-se novo deus da “verdade única”, decidindo quem pode ou não pode entrar ao Paraíso e lá desfrutar das 70 mil virgens. Depois, é claro, de matar na Terra todos os infiéis!

Por tudo isso, sou Charlie. Mas sou Charlie também aqui.

******

Flávio Tavares é jornalista e escritor e recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e em 2005