Primeiro foi o papa Francisco, que numa entrevista com um jornalista francês fez uma crítica ao Charlie Hebdo e à sua atitude de ridicularização e difamação das religiões. Para ele há um limite para a liberdade de expressão – que é o da ofensa. E, diante de ofensas, seriam de se esperar reações violentas.
Depois, aqui no Brasil, foi a vez do novo secretário de justiça de São Paulo, Aloísio Toledo César, para quem o Charlie faz “mau uso da liberdade de expressão”, provocando e humilhando os muçulmanos – como numa declaração de guerra. Depois, na Tchetchênia, um milhão foram às ruas para protestar contra o Charlie.
A comoção causada pelo ato terrorista que culminou no assassinato dos cartunistas do Charlie Hebdo teve como uma de suas consequências iniciais imediatas a defesa incondicional da liberdade de expressão. De fato, considerando-se como reações inaceitáveis à livre expressão tanto a censura quanto, mormente, a violência física, essa defesa se faz indispensável.
Contudo, liberdade de expressão não significa imunidade à crítica. Aliás, se o que se expressa originalmente é uma crítica, nenhum mal pode haver numa crítica em sentido contrário. Em sociedades abertas, ideias se combatem com ideias, não com proibições e violências. Tal embate de ideias pode ir de análises críticas a perorações morais, passando pela ironia e pelo humor. Sempre com o detalhe de que a sociedade só será mesmo aberta se for mantida por todo o tempo a via de mão dupla (ou múltipla).
É neste contexto que se coloca o problema da satirização do islã e de outras religiões, como faz o Charlie Hebdo. Após o atentado, tão logo alguns criticaram o hebdomadário francês, defensores de seu conteúdo se adiantaram em categorizar o jornal satírico como “metralhadora giratória” cujo humor ferino não se dirigia apenas ao islamismo, mas a todas as religiões e, em especial, à direita francesa.
O problema é que metralhadoras giratórias geram balas perdidas. O ataque ao extremismo islâmico, quando feito por meio de caricaturas degradantes de Maomé (como a do profeta nu, de quatro), acaba ferindo os muçulmanos de um modo geral – até mesmo os mais moderados. O que tal tipo de humor provoca (e talvez seja este seu instrumento) é a degradação da imagem de todo um grupo social unido por uma identidade. Ou seja, ri-se do outro ao escarnecer-se dele. Só que esse “outro” é por vezes não um indivíduo, ou uma organização em particular, mas todo um segmento social do qual se ri ao degradar sua dignidade como tal.
A metralhadora simbólica do Hebdo por vezes atingia a cristãos e, mais raramente, judeus. Com a diferença importante de que a sociedade francesa é historicamente cristã e, ao mesmo tempo, berço do secularismo. Ali, ao longo da história, a crítica à religião (pelo menos desde Voltaire) amalgamou-se à nacionalidade. Desse modo, o cristianismo e o secularismo franceses caminharam juntos por mais de dois séculos e foram se habituando um ao outro. Blindados por esse longo treino, os cristãos franceses não recebem da mesma forma que os muçulmanos as balas da metralhadora giratória que lhes são dirigidas.
Moral e política
Sociedades que recebem muitos imigrantes, de tradições culturais distintas, tornamse, por isto mesmo, multiculturais, mesmo que reneguem tal transformação. A França de hoje não é mais apenas a de Voltaire, De Gaulle ou Truffaut. É também a de Zidane, Benzema e Dieudonné.
Os britânicos, que convivem com tal mescla multicultural há mais tempo e processam de outra forma o pluralismo, tratam o problema com maior tolerância. O republicanismo francês tem dificuldade para fazê-lo, pois só entende a integração como assimilação. Em sua própria senda ideológica (à esquerda), o Charlie segue essa mesma tradição – daí escarnecer do que lhe é diverso.
O contexto muda junto com a mudança da sociedade. Há algumas décadas a sociedade francesa não era tão multicultural como é hoje. Há algumas décadas os Trapalhões faziam piada “de preto”, com a participação do Mussum, e isso parecia normal. Hoje já não parece. Curiosamente, ao mesmo tempo em que se torna impróprio fazer piadas “de preto” ou “de bicha”, parece mera liberdade de expressão fazer piadas de muçulmano (desta vez sem aspas). O mesmo vale para eventuais piadas sobre o holocausto ou o nazismo. Por suas piadas antissemitas, o humorista Dieudonné foi preso na mesma França que diz “Je suis Charlie”.
Claro que também faz diferença saber quem faz a piada ou em que meio o faz. O prolífico humor judaico é rico em escárnios que não são igualmente aceitos caso venham de não judeus. Rir de suas próprias desgraças é diferente de rir das desgraças alheias. Lembre-se do caso de Danilo Gentili, para quem os “velhos de Higienópolis” seriam contra o metrô porque “a última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. O pedido de desculpas do humorista foi tão ruim quanto sua piada, mas muito revelador: “Minha intenção como comediante nunca foi trazer outro sentimento ao público que não fosse alegria.” O fazer rir surge como escusa para qualquer coisa.
E satirizar a religião dos seus próprios é diferente de satirizar a religião alheia – mesmo que ela se torne, cada vez mais, uma religião dos seus próprios concidadãos. Ao escarnecer dos muçulmanos, o Hebdo fazia troça da dignidade de muitos de seus novos concidadãos, a maior parte deles integrados à sociedade e respeitadores da lei francesa. Integrados, porém diferentes. Não só os assassinos (também cidadãos franceses) se ofenderam.
A crítica moral e política do que pode ser notado (moral e politicamente) como excesso é diferente da censura ou da proibição. Assim como a proteção do direito à livre expressão se distingue da proteção do privilégio da imunidade à crítica – ou seja, o privilégio dos que não aceitam ser criticados. Isso vale não apenas para os caricaturados e satirizados (como o ditador norte-coreano no filme A Entrevista), mas também para os caricaturistas e humoristas. Não aceitar isso é, no mínimo, muita falta de senso de humor.
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Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGVSP e colunista convidado do Valor