Quatro anos antes de ter sido encontrado morto no apartamento de número 134 do Edifício Le Parc, em Puerto Madero, o promotor argentino Alberto Nisman voltava sua atenção para o governo brasileiro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aprontava para embarcar de Doha para Teerã, onde seria recebido pelo iraniano Mahmoud Ahmadinejad, naqueles dias de meados de maio de 2010. Entre os anfitriões da delegação brasileira, quem mais consternava Nisman não era o sujeito mirrado que negava o Holocausto e a existência de gays em solo iraniano. O maior problema, repetia, era um homem de nome Ahmed Vahidi.
Segundo o promotor, havia partido de Vahidi – feito ministro da Defesa por Ahmadinejad – a ordem para estacionar uma van carregada de explosivos e mandar para os ares a Associação Mutual Argentina-Israelita (Amia), em 1994, matando 85 argentinos. Que os brasileiros não se esquecessem, dizia Nisman numa entrevista ao Estado: o iraniano que apertaria a mão de Lula e, pelo protocolo diplomático, teria uma reunião com o então ministro da Defesa do Brasil, Nelson Jobim, era acusado de ser o mentor do maior atentado terrorista da história da Argentina e o mais sangrento ataque contra um alvo judaico fora de Israel desde o fim da 2ª Guerra Mundial.
Ao telefone, o promotor soltava uma torrente de informações contendo nomes, datas e encontros clandestinos. Falava num espanhol portenho a galope, quase sem pausas. No organograma do terror que ele montara em seis anos de investigação Vahidi entrava como o chefe da unidade Al-Quds da Guarda Revolucionária – “o braço iraniano que conduz operações terroristas no exterior” – e elo com o grupo xiita libanês Hezbollah, suposto coautor do atentado em Buenos Aires. Teria sido numa reunião no Irã, em agosto de 1993, que o agora ministro de Ahmadinejad dera o sinal verde para a operação na América do Sul.
“Vahidi teve papel-chave no planejamento e na decisão de atacar a Amia. Na Argentina, cumpriam suas ordens diretas”, dizia Nisman. “É preciso entender que ele é acusado de terrorismo internacional. Há uma ordem de captura para que ele seja julgado aqui.” Três anos antes da conversa ao telefone, a Interpol havia encontrado fundamentos suficientes na acusação da promotoria argentina para expedir um mandado internacional de prisão contra Vahidi e outros três iranianos. Quando Ahmadinejad visitou Brasília, em novembro de 2009, achou melhor deixar seu ministro da Defesa em Teerã.
Vahidi chegaria a fazer uma visita à Bolívia, em 2011. A notícia alcançou a imprensa portenha e o governo de Evo Morales se desculpou publicamente com os argentinos “pelo grave incidente”, alegando que não sabia de quem se tratava. O iraniano teve de antecipar seu retorno de La Paz.
“Sem interesse”
Horas depois de Lula pousar em Teerã, o ministro Nelson Jobim surgiu no hall do hotel onde se instalava a comitiva brasileira. Era um Hilton modernista que hospedara os astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin, antes de ser nacionalizado pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. Acabou rebatizado de Hotel Independência e parado no tempo, de frente para a bela cordilheira que rodeia parte de Teerã. Gauchão alto e espalhafatoso, Jobim era uma figura conspícua no lobby iraniano.
“Ministro, o senhor vai se encontrar com seu homólogo do Irã, acusado pelo atentado na Argentina?” Ele desconversou, balbuciando algo sobre “soberania”. E mudou de assunto. Em segundos, a conversa com a rodinha de jornalistas havia enveredado para o futuro do PMDB no Congresso. (Meses depois, Jobim – ex-ministro do STF – daria uma entrevista ao Estado argumentando que o apedrejamento até a morte de mulheres adúlteras em países como Irã e Arábia Saudita “é um problema deles, não é nosso”, e questionar esse tipo de prática “é uma imposição ocidental” que viola costumes locais e o princípio da autodeterminação. Até 1979, a lapidação inexistia na legislação iraniana.)
Jobim silenciava, mas estava em sua agenda uma reunião protocolar com Vahidi para nada discutir e nada divulgar. O atentado na Argentina não entraria na pauta, disseram assessores. O chanceler Celso Amorim garantiu que trataria, sim, de questões de direitos humanos com os iranianos, mas de forma reservada. Durante a visita de Lula, a acadêmica francesa Clotilde Reiss, condenada por espionagem, foi solta. Era “um presente aos brasileiros”, explicaram autoridades iranianas.
No penúltimo dia de Lula em Teerã, surgiu o primeiro-ministro (hoje presidente) da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no hall do Hilton nacionalizado. Brasil, Turquia e Irã haviam chegado a um plano conjunto sobre o programa atômico iraniano, segundo o qual a República Islâmica trocaria urânio com baixo grau de enriquecimento por combustível nuclear. Amia ou qualquer outro tema sumiram definitivamente do noticiário.
Nisman queria que los brasileños soubessem com quem estavam lidando, mas se furtava de criticar abertamente a ida de Lula ao Irã de Ahmadinejad – e Vahidi. Esquivava-se da pergunta. Pressionado, respondeu que se tratava de “uma questão política” do Brasil, e ele era um promotor argentino.
No entanto, quando o governo de Cristina Kirchner começou a se aproximar da República Islâmica, não era só “uma questão política”. Segundo Nisman, existia um plano concertado para esconder a participação iraniana no atentado de 1994 em troca de oportunidades comerciais. O promotor dizia que o acobertamento fora acertado em 2011, numa reunião secreta na Síria entre os chanceleres argentino, Héctor Timerman, e iraniano, Ali Akbar Salehi. Entre as provas que colecionava sobre o encontro havia um telegrama que Salehi teria enviado a Ahmadinejad: “A Argentina não está mais interessada em resolver aqueles atentados. (…) Prefere melhorar seus laços comerciais”.
Uma cópia do documento seria entregue ao Congresso argentino na terça-feira [20/1]. Mas o corpo do promotor foi encontrado em Puerto Madero um dia antes.
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Roberto Simon é jornalista e mestrando em Política Internacional em Harvard