A estranha morte do procurador federal Alberto Nisman, no domingo (18/1), véspera de quando pretendia formalizar denúncia contra o governo de Cristina Fernandez de Kirchner por “tentar encobrir” os responsáveis pelo atentado à sede da entidade judaica Amia no qual, há 20 anos, morreram 85 pessoas, continua fazendo vítimas na Argentina. E a principal delas é a verdade.
Apesar de o assunto ser manchete dos jornais, revistas, rádios e TVs há mais de 15 dias, os argentinos estão longe de disporem de dados que realmente possam contribuir para que entendam o que aconteceu. A desinformação por parte da maioria destes veículos é permanente e proposital e atende a outras lógicas que não as que deveriam presidir veículos de comunicação.
O assunto, em si, não poderia ser mais explosivo, especialmente da forma em que foi apresentado à população. De um lado, quase uma centena de mortos da mais influente comunidade judaica fora de Israel, incluído agora o próprio Nisman, e, de outro, acusações que tentam ligar o governo argentino à tentativa de encobrir, por interesses comerciais, a ação de terroristas iranianos.
Some-se a isso contextos que não podem, em nenhuma hipótese, ser negligenciados: o recente atentado contra a publicação Charlie Hebdo, em Paris, e a sucessão presidencial que terá lugar este ano na Argentina. Há por parte das publicações contrárias ao governo de Kirchner a tentativa de estabelecer uma “conexão muçulmana” entre o que se passou na Argentina e a realidade francesa, trazendo para a América do Sul uma radicalização entre judeus e muçulmanos circunscrita ao cenário europeu.
De olho nestes dois fatos, a maior parte da mídia na Argentina está, na prática, tentando se valer da morte de Nisman (um destacado membro do Ministério Público local) para dar um xeque-mate em Cristina Kirchner, mais por suas virtudes do que por erros que tenha cometido. A virtude em questão tem a ver com a adoção da Ley de Medios, a versão local da regulação democrática da mídia.
Aprovada há seis anos, só em janeiro de 2014 foram derrubadas pela Suprema Corte as últimas ações do grupo Clarín que impediam a sua adoção. Na Argentina como no Brasil, a mídia está concentrada em pouquíssimas mãos, com o grupo Clarín sendo o mais influente deles. Em outras palavras, o grupo Clarín passou a ter que tomar, na prática, providências para vender parte de suas empresas a fim de adequar-se ao que determina a legislação.
Uma série de novas ações protelatórias, especialmente em tribunais regionais, está sendo tentada, mas nenhuma soa mais eficaz do que desmoralizar e derrotar o governo que as adotou. De quebra, se este governo não conseguir fazer seu sucessor, tudo poderá voltar à estaca zero. Razão que explica, mas não justifica, a virulência com que o grupo Clarín, neste episódio, tem se posicionado e se referido ao governo de Cristina Kirchner. Virulência que espanta até mesmo esta pesquisadora, acostumada aos excessos e à falta de ética de parcela significativa da mídia brasileira.
Bombardeio midiático
E se no ano passado, a revista semanal do grupo Clarín publicou, como ilustração de capa para uma reportagem sobre supostas irregularidades no governo de Cristina Kirchner, uma fotomontagem em que a presidente aparecia nua, agora a chama diuturnamente de “mentirosa”, acusando-a, sem provas, de “querer acobertar os iranianos responsáveis pelo atentado à entidade judaica”.
Diante do bombardeio midiático que passou a enfrentar, a Casa Rosada tomou algumas providências: a própria Cristina valeu-se de sua página na internet para se posicionar, foi convocada uma entrevista coletiva, o chanceler Héctor Timerman, ele próprio um judeu argentino, falou para a mídia norte-americana e até mesmo um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV foi feito pela presidente. Ao contrário de levarem em conta as informações fornecidas, a mídia, Clarín e La Nación à frente, continuou batendo indiscriminadamente no governo. Entre os argumentos apresentados estava que a presidente não poderia e nem deveria se pronunciar diretamente pelas redes sociais, especialmente quando ela não tinha certeza sobre o que aconteceu. Num primeiro momento Cristina chegou a admitir que a morte do procurador Nisman pudesse ter sido suicídio e depois mudou de ideia, passando a considerar a possibilidade dele ter sido morto.
Em relação às críticas por usar as redes sociais, a presidente foi muito clara: a Constituição não proíbe que isto seja feito e não há razão para ela se tornar a única pessoa privada de liberdade de expressão, num país em que a mídia é livre. Quanto ao chanceler Timerman, em entrevista à conceituada Rádio Pública norte-americana ele fez questão de mostrar a inconsistência dos argumentos de que o governo argentino teria interesse em acobertar terroristas iranianos, devido a um acordo de comércio assinado entre Argentina e Irã em 2013. Enquanto os adversários assinalam que agindo assim o governo estaria assegurando a troca de soja por petróleo iraniano, nestes dias de economia combalida, Timerman mostrou que isto seria impossível, pois o petróleo iraniano é muito pesado e não poderia ser refinado na Argentina. Aspecto que a mídia adversária, convenientemente, fez questão de desconhecer.
É importante destacar que, no dia seguinte à morte de Nisman, o governo determinou que fossem tornadas públicas as 283 páginas do documento contendo as acusações que o fiscal iria fazer contra o governo. E é aí que as desinformações se tornaram mais graves e evidentes.
Ao contrário de seguir várias linhas de investigação, buscando mostrar não apenas a cena do crime, mas as ligações e interesses envolvendo este fiscal e a apuração que desenvolvia, a maior parte da mídia argentina optou por uma “típica cobertura policial”, commocinhos e bandidos previamente definidos. Mas a coisa pode e parece ser bem mais complicada.
Nisman e a embaixada norte-americana
Na quinta-feira (29/1), durante o enterro de Nisman, sua ex-esposa, juíza federal, foi tachativa. Descartou a hipótese de suicídio e sugeriu que se deva investigar os contatos e relacionamentos do ex-marido. Este aspecto de sua fala foi noticiado pelo Clarín sem qualquer destaque, como igualmente sem qualquer destaque foi publicado que entre os presentes à cerimônia fechada de velório estavam apenas a família, poucos amigos e o embaixador dos Estados Unidos na Argentina.
Publicações mais à esquerda – e com menor repercussão no país – já haviam se dado conta do estreito relacionamento entre Nisman e a embaixada dos Estados Unidos. Relacionamento, aliás, detalhadamente publicado pelo jornalista Santiago O’Donnell, no livro Politileaks: Todo lo que la política Argentina quiso esconder. Sus secretos em WikiLeaks de A a la Z, editora Sudamericana.
O livro de 2014 está organizado em verbetes e pode ser encontrado com facilidade em qualquer das centenas de librerías espalhadas por Buenos Aires. O verbete dedicado a Nisman ocupa sete páginas. Nele fica nítido que foi o governo dos Estados Unidos quem estimulou e reforçou a hipótese de que teriam sido iranianos os suspeitos de terem cometido o atentado à sede da Amia. Mostra ainda que foram inúmeros os encontros mantidos entre funcionários da embaixada e Nisman, nos quais insistiram para que ele deixasse de lado “a pista síria” e a “conexão local”, por considerar que elas poderiam debilitar o assunto.
O verbete mostra ainda um Nisman solícito diante dos pedidos e conselhos da embaixada, a ponto de ter sido ele que, em várias oportunidades, tomou a iniciativa de fazer o contato. Curiosamente, em outro episódio em 2008, Nisman chegou a pedir perdón à embaixada dos Estados Unidos por não ter avisado que iria pedir a prisão do ex-presidente Menem. O assunto não tem relação com o atentado à Amia, mas deixa patente a subserviência deste alto funcionário a um país estrangeiro, especialmente num contexto em que o governo argentino tanto naquela época quanto agora, enfrenta a pressão norte-americana no que diz respeito à sua dívida externa.
“Sótãos da democracia”
Naquele verbete, que reproduz contatos diplomáticos reservados levados a público pelo WikiLeaks, fica evidente que representantes da Amia, da chancelaria argentina e do FBI, em diversas oportunidades, apresentaram “sus reparos sobre la solidez de las pruebas acumuladas em la investigación”. Há ainda a citação de cooperação secreta entre a Argentina e os Estados Unidos no que se refere à busca pelos responsáveis pelo atentado, ao mesmo tempo em que não é feita qualquer referência à possível ação encobridora por parte de Cristina Kirchner. É certo que os documentos abordam apenas parte de seu governo, mas são significativos e foram convenientemente esquecidos pela mídia local até o diário Página 12 colocá-los em cena.
Foram o Página 12 e a edição de fevereiro do Le Monde diplomatique/Argentina que trouxeram seriedade e consistência a uma cobertura que, sem isso, estaria fadada a se transformar em apenas mais um show midiático a favor da oposição ao governo argentino. Manchetes como “Servicios de inteligência: sótanos de la democracia”, na qual abordam a morte de Nisman à luz da revisão das estruturas de inteligência no país, estruturas marcadas pela opacidade e falta de controle, estão obrigando El Clarín e La Nación a não desconhecerem estes aspectos. Mesmo assim, o fazem de forma discreta, quase imperceptível para o leitor comum. Algo para constar, caso sejam, num futuro, acusados de terem omitido fatos essenciais para a compreensão do caso.
A edição do Clarín do sábado (31/1), de um total de mais de 10 páginas sobre a morte de Nisman, dedica espaço na página 8 a informar que o serviço de inteligência dos Estados Unidos, CIA, acredita que Nisman foi morto por uma briga interna de integrantes do serviço secreto argentino, a Side. E, como se essa fosse uma informação trivial, passa, em seguida, a responsabilizar Cristina Kirchner pelo que ocorreu, levantando três hipóteses, sempre baseadas em fontes não identificadas: (1) a morte é de responsabilidade de setores ligados à presidente, (2) a morte é culpa de setores contrários à presidente, e (3) a morte é resultado de disputa entre esses dois setores. Segundo o Clarín, em todos os casos, a culpa recai sobre a presidente!
No pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, na segunda-feira (26/1), Cristina Kirchner anunciou que estava enviando ao Congresso Nacional projeto de lei que reestrutura o Serviço de Inteligência do país. A decisão foi uma espécie de resposta à negligência dos responsáveis pela garantia de vida que Nisman deveria ter, por parte do Estado. No dia de sua morte, os seguranças não apareceram, argumentando que tinham sido dispensados pelo próprio Nisman. Curiosamente, no luxuoso condomínio de apartamentos em que o procurador morava, em Puerto Madero, bairro de elite em Buenos Aires, as câmeras de segurança também não estavam funcionando e seu apartamento, trancado por dentro, sem qualquer indicio da presença de estranhos. Some-se a isso que o próprio Nisman havia solicitado a um funcionário seu da área de informática, uma arma. Segundo este técnico, a arma era para defender as filhas de Nisman, que vivem com a mãe. A arma foi encontrada junto ao seu cadáver.
Ferida aberta
O projeto de reestruturação anunciado por Cristina chegou ao Congresso na última sexta-feira, pouco antes de a presidente embarcar para uma viagem à China. De saída, a oposição tentou desqualificá-lo dizendo que se tratava de uma mera mudança de sigla. Na prática, esta mesma oposição já percebeu que terá que enfrentar um debate muito mais sério e profundo em se tratando da história recente da Argentina. Debate que terá lugar exatamente num ano eleitoral e cuja temática é uma ferida aberta no país: o papel de cada um, políticos, órgãos de segurança, entidades da sociedade civil e até mesmo governos estrangeiros como o dos Estados Unidos, na chamada “guerra suja” quando milhares de pessoas foram mortas e desapareceram, sem falar em outras tantas barbaramente torturadas e nas mães que tiveram seus bebês roubados pela ditadura.
Deste debate, os veículos conservadores da mídia Argentina querem distância, até porque muitos deles, a começar pelo próprio Clarín, têm uma história de colaboração e de apoio à ditadura nada edificante e que tentam, por todos os meios e modos, apagar.
O debate é complexo e desafiador. Dele tanto pode surgir a luz como propiciar o retorno à escuridão. Quem torce por um futuro cada vez mais democrático e transparente para a Argentina não pode ficar alheio ao que se passa com nossos vizinhos, pois só assim tantas mortes, incluindo as das 85 pessoas do atentado à entidade judaica e a do próprio Nisman não terão sido em vão.
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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. O texto foi publicado no blog Estação Liberdade