Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Selfies em Auschwitz

O número de sobreviventes está minguando. Quando o Exército Vermelho escangalhou os portões de Auschwitz no dia 27 de janeiro de 1945, libertou perto de sete mil sobreviventes do maior campo da morte nazista. Destes, 600 eram crianças. Uma década atrás adultos e crianças ainda somavam 1.500. Na cerimônia da semana passada pelos 70 anos da libertação do campo não havia mais adultos de antanho: no reduzido grupo de 300 homenageados restavam apenas as crianças de ontem. Hoje são todos octogenários ou mais. É o que resta dos 1,6 milhões de judeus despachados para Auschwitz-Birkenau na Segunda Guerra, dos quais apenas 400 mil chegaram a ser registrados.

A grande questão é como planejar o futuro e preservar o impacto educativo do lugar quando ele já começa a ser descrito em folhetos de agências de viagem como “uma lendária atração turística”. Somente no ano passado, mais de 1,3 milhões de visitantes munidos de smartphones circularam pelos barracões de Auschwitz transformados em museu e memorial.

Era inevitável que esse aterrador complexo de extermínio entrasse para o chamado “circuito Holocausto” encabeçado pelo Museu Anne Frank, onde Justin Bieber depositou um memorável testemunho no livro de visitas: “Anne foi uma garota e tanto. Acho que ela teria sido uma Belieber” (designação das tietes do cantor).

Auschwitz foi o maior dos cerca de 52 campos de concentração e extermínio por uma questão de logística. Situado no coração geográfico da Europa e de fácil acesso por trem, esparramava-se numa área descampada e plana, nas franjas de uma cidade. Um cinturão de isolamento de 40 quilômetros quadrados garantia o funcionamento ininterrupto das câmaras de gás, fornos crematórios, barracões e instalações administrativas construídos pelos prisioneiros.

Dezenas dessas edificações sobreviveram à tentativa nazista de destruir tudo antes da chegada dos soviéticos. Mas sua conservação é problemática. “Evitamos derrubar e reconstruir as mais danificadas pois as paredes já não seriam mais as mesmas, não teriam sido erguidas pelos prisioneiros. Não basta os tijolos serem os mesmos”, explicou ao jornal “The Guardian” a encarregada da preservação.

Consciência despertada

Causou enorme embaraço tempos atrás o roteiro elaborado pela agência de viagens britânica The Stag and Hen Experience, especializada em excursões só para homens e só para mulheres. Um dos destinos para clientes do sexo masculino era Cracóvia, com as seguintes ofertas especiais: passeio de trenó puxado por cães husky, degustação de vodcas, luta livre entre mulheres besuntadas, tiro ao alvo e Auschwitz — todas elas terminando o dia numa boate ou num giro-bebedeira por bares da cidade. A escapadela de 70 quilômetros até o campo da morte vinha com um alerta: “Entendemos que essa atividade não seja do gosto de qualquer um, mas, para muitos, uma visita à Polônia não seria completa sem prestar homenagem a uma das maiores farsas do século 20. Por isso, oferecemos esta viagem a um dos museus mais dantescos do mundo”.

Para o polonês Piotr M. A. Cywiski, diretor do museu e do Memorial de Auschwitz, não importa o que atrai o visitante até lá. “O que queremos é que ele saia daqui com alguma reflexão. E pense numa forma de acabar com os horrores de hoje”.

Difícil saber se turistas como os da agência londrina ouvem o que os guias altamente qualificados do campo recitam em tom propositalmente neutro para deixar que os fatos falem mais alto: “A enorme quantidade de cinzas produzidas pelos fornos crematórios não era problemática para a direção do campo. Mil cadáveres incinerados produziam três toneladas de cinzas e estas eram espalhadas pelo rio e sobre a terra . Em Auschwitz não há um centímetro de solo onde se pode andar sem pisar em cinzas de prisioneiros cremados”.

(Recomenda-se aqui a leitura do conto “Guided tours of hell”, da escritora americana Francine Prose, de seu livro homônimo. Existe em e-book, em inglês)

Na Inglaterra, a diretora da Fundação Educacional do Holocausto, Karen Pollock, se preocupa com o inexorável desaparecimento dos sobreviventes. São os guardiães da memória e melhor escudo contra a trivialização da História. “O impacto de um testemunho pessoal é insubstituível. Quem o ouve acaba sentindo algum dever em passar adiante a história que ouviu de viva voz”, diz ela. Todas as escolas públicas inglesas são obrigadas a designar dois alunos a cada ano para uma visita guiada a Auschwitz.

De Israel chegam anualmente cem mil colegiais. Inevitavelmente ocorrem deslizes típicos de uma geração viciada em tecnologia e obcecada por ela mesma. No ano passado pipocaram fotos e tweets que seus pais prefeririam não ver: selfies de jovens simulando pedir carona junto aos trilhos dos vagões da morte, hashtags como #montedecinzas, fotos com poses em frente ao crematório.

Uma blogueira israelense que preferiu guardar anonimato causou comoção nacional ao reunir esse tipo de material e postá-lo no Facebook sob o título irônico de “Com minhas lindas garotas em Auschwitz”. Entrevistada pela revista “New Yorker”, ela explicou que usou o sarcasmo porque, se falasse sério, não seria ouvida. A blogueira não culpa os jovens. “Muitos políticos usam o Holocausto de forma cínica para servir a suas agendas políticas”, diz ela, satisfeita com o resultado de sua ação: quase todos os adolescentes tiraram do ar os posts mais inadequados.

O diretor Cywinski vê uma câmara de gás quando olha pela janela de seu escritório. “Acusamos os que nada fizeram para acabar com aquilo. E hoje?”, pergunta ele. “Quando vemos imagens de genocídios, tragédias, fome ou regimes totalitários, nosso silêncio é indefensável”. Lançou um alerta aos representantes de 40 nações e demais presentes à cerimônia desta semana: “Auschwitz não é uma fonte de força. Quem veio até aqui para fazer catarse, colher força ou sabedoria está equivocado. Auschwitz é escuridão, destruição, aniquilamento… E por isso adquire a forma de aviso, um aviso horrendo. Auschwitz não desperta mais os demônios, desperta a consciência humana. E esta consciência acusa cada um e todos nós”.

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Dorrit Harazim é jornalista