Matt Kowalski (George Clooney) para Ryan Stone (Sandra Bullock), em Gravidade:
“Eu entendo, é confortável aqui. Você poderia desligar todos os sistemas, as luzes, apenas fechar os olhos e fingir que ninguém mais existe. Não tem ninguém aqui que possa te machucar. É seguro. Qual é razão para continuar? Qual é a razão para viver? Seu filho morreu; a vida não fica mais difícil que isso. Mas ainda é uma questão do que você vai fazer agora. Se você decidir voltar, então você precisa ir em frente com isso. Senta, aproveita a viagem, você precisa colocar os dois pés no chão e continuar a viver a vida. Ei, Ryan, é hora de ir para casa.”
Gravidade, de Alfonso Cuarón, é tão cheio de belas imagens e efeitos especiais que é possível terminar de assisti-lo sem se atentar ao óbvio: o filme trata, como um de seus pontos fundamentais, o suicídio. Dia desses deparei com uma crítica que aborda bem essa perspectiva presente no longa-metragem:
“Estamos todos à deriva, em busca de algo a que possamos nos agarrar. A nossa primeira deriva é a gestação, e no centro de nossas barrigas está o primeiro ponto que nos ata. Com o tempo, aquilo à que nos seguramos deixa de ser tão literal, as mãos dadas com os pais se transformam em um vínculo emocional. Passamos a vida coletando novos cordões umbilicais que possam impedir a nossa deriva. Nos casamos. Temos filhos. Escolhemos uma religião, um time de futebol. Compramos bens como casas e carros. Mas assim como a aquisição de tais pontos de referência e estabilidade impedem nossa deriva, a perda brusca desses pontos nos impulsiona para o vazio e sua desorientação. A morte de um ente querido, o abandono, a falência e o fim de uma fase da vida são como pequenos empurrões em nós- que ganham porém um movimento perpétuo pela inércia do espaço vazio, um movimento que só pode ser impedido pela vontade de se agarrar a outro ponto de referência. […] Isso não consiste apenas em divagações de início de crítica – é também o cerne da teoria de Durkheim sobre o suicídio e a deriva social. Quando o homem não tem laços estreitos com algo em sua comunidade, ele corre o risco de que qualquer impulso nessa inércia do espaço vazio o afaste demais da superfície – até que ele se encontre longe demais para o alcance do resgate. É quando a razão de viver se perde, e é onde normalmente acontecem os suicídios, nesse espaço do vácuo” (Ana Clara, no site Ovo de Fantasma).
Bem lá atrás (século 19), Émile Durkheim demonstrou por A+B que aquilo que aparentava ser uma ação de foro íntimo, ou seja, apenas no campo do privado, era um fato social. Toca ele fazer levantamentos de registros e montar tabelas para entender os índices de então. Resultado: percebeu que a taxa de suicídio permanecia constante por longos períodos de tempo, tendo muito menos variação que outros fenômenos demográficos.
Solidariedade e integração social
O que isso quer dizer?
Por mais que o suicídio seja de caráter individual, de natureza própria, é também eminentemente social. Poderiam passar anos ou décadas e a taxa de suicídio permaneceria a mesma, com pouca mudança. Mas encontraríamos diferenças se comparássemos países diferentes. Em outras palavras: Durkheim percebeu que havia povos que se matavam mais do que outros.
Também percebeu que era possível diferenciar grupos mais ou menos propensos a praticar o suicídio: casados se matavam menos que solteiros, protestantes mais que católicos, homens mais que mulheres, por exemplo. Uma clara indicação, portanto, que as sociedades como um todo e os círculos sociais de cada uma possuíam influência nesse tipo de morte. Seria como dizer que as sociedades têm, em cada momento histórico, uma disposição definida para o suicídio.
Mas por que isso acontece? Aí entram dois fatores: integração social e solidariedade. Solidariedade no sentido de “como e por que meios” uma sociedade se mantém coesa (nada a ver com distribuir caridade e responder cartinhas de natal dos correios) e integração social é a medida em que você se sente membro pertencente a um grupo (família ou trabalho, por exemplo). Baixa solidariedade e pouca integração social são grandes influenciadores de suicídios. São nossos cordões umbilicais. Corta-se um, talvez se sobreviva com o outro. Cortam-se os dois, estamos à deriva.
Sociedade e indivíduo
Você pode estar pensando que se ouvimos pouco sobre isso é porque os índices são pequenos. Enganamo-nos. Na verdade, uma pessoa se mata a cada 40 segundos no mundo. Três mil por dia. Sendo numericamente mais claro: 804.000 suicídios no ano de 2012. Destes, 11.821 só no Brasil, o oitavo país com a maior quantidade de suicídios.
E, sim, homens se matam muito mais: 9.918 homens e 2.623 mulheres, tomando como exemplo nós, brasileiros (2012). O número de tentativas pode chegar até 20 vezes mais que o de mortes. Entre jovens de 15 a 29 anos, dar fim à própria vida está entre a segunda maior causa de morte global. Como se matam? Ingerindo pesticidas, enforcamento ou com armas de fogo.
Cerca de metade das mortes (não incluindo acidentes e causas naturais) no mundo são por suicídio, 35% por homicídio e 15% por conflitos armados. Aquele número lá em cima, 804.000 em 2012, representa metade das mortes intencionalmente provocadas naquele ano. Precisamos considerar que há mais gente tirando a própria vida do que a de outros e, mesmo com números tão expressivos, pouco ouvimos falar deles.
A imprensa hoje adota a postura de não publicar sobre essa realidade cotidiana, excetuando-se pessoas famosas. Com o intuito ou pretensão de não incentivar que outros façam o mesmo, acaba por esconder uma realidade que poderia ter um tratamento mais adequado caso fosse socialmente mais perceptível. Afinal, não são assim que as políticas públicas funcionam?
A causa do suicídio, grosseiramente falando, estaria, portanto, na ausência da sociedade na vida do indivíduo. Num coletivo de ações individuais, é algo que afeta fortemente a época e o mundo em que vivemos. E, diga-se de passagem, bem longe da beleza plástica dos efeitos especiais em meio às estrelas, como no filme de Cuarón. De semelhante, nossa ignorância sobre ao passar despercebido.
>> Nota:Atualmente, o serviço 141 (Linha da Vida) funciona 24 horas todos os dias. Também por Skype, chat e e-mail (http://www.cvv.org.br).
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Alexandre Marini é sociólogo