Nunca tantos falaram tanto em estelionato eleitoral. Nunca de modo tão justificado e verdadeiro. Dilma Rousseff, depois de reeleita, não apenas passou a praticar o oposto do que prometera, como adotou as medidas que, segundo dizia durante a campanha, os seus adversários implementariam para fazer a alegria dos banqueiros. E isso assim, de um dia para o outro, sem nem disfarçar. Tão logo faturou as eleições, abençoou a elevação dos juros pelo Banco Central, convocou a doutrina Chicago para encabrestar o Ministério da Fazenda e começou a comer pelas bordas as tais “conquistas sociais” da tal “classe trabalhadora”. Se isso não é estelionato, um pérfido estelionato ideológico, revogue-se o dicionário.
No governo estadual foi a mesma coisa. Gastando rios de dinheiro em propaganda oficial para convencer o eleitor de que a Sabesp esbanjava competência e nunca deixaria faltar água, Geraldo Alckmin reelegeu-se com um dilúvio de votos. Depois de vitorioso admitiu que o racionamento já existia. Outra vez estelionato. Estelionato hídrico.
Triste de quem acreditou numa, infeliz de quem pôs fé no outro. Foram todos engambelados. A política não é mais o reino das inverdades dissimuladas (bons tempos aqueles, em que valiam os ensinamentos de Platão sobre a mentira prudente que protegia a polis). Hoje a política dispensa a dissimulação; seus profissionais não se envergonham de bradar o perfeito contrário do que pretendem fazer. Mentir pouco é bobagem. É preciso afrontar a verdade com todas as forças da bilionária publicidade oficial (e da propaganda eleitoral, o que acaba dando no mesmo). Há que mentir, aos berros, de dedo e riste, em choque frontal com a verdade.
Uma vez consumada a lorota, chega então a hora de mentir ainda mais. Se a mentira tem pernas curtas, é preciso dotá-la de próteses artificiais. É o que faz Dilma Rousseff. Cumprindo religiosamente a cartilha do PSDB, segue dizendo o contrário. E jura que as medidas recessivas que adotou não são recessivas. “Ajustes fazem parte do dia a dia da política econômica”, declarou no início da semana. “Ajustes nunca são um fim em si mesmo, são medidas necessárias para atingir objetivos de médio prazo, que em nosso caso permanece o mesmo, crescimento econômico com justiça social. Não promoveremos recessão e retrocesso.”
Eis que, na cabeça presidencial, o monetarismo ortodoxo que eleva juros e corta o orçamento nada mais é que uma ferramenta para o “crescimento econômico com justiça social”. Você acredita? Não? Pois há quem esteja abismado com o fato de que Dilma, pelo menos ela, dá sinais de acreditar em si mesma. Não se sabe bem se ela mente quando diz ou se mente quando acredita sinceramente no que diz. Ela acredita no monetarismo socialista.
Mais alguns dias e veremos o governo federal convocando as centrais sindicais (devidamente cooptadas) para organizarem marchas de militantes (devidamente pagos) portando faixas e cartazes com os dizeres: “Mais juros”, “mais cortes” e “mais banqueiros no Banco Central”. Tudo em nome do “crescimento econômico com justiça social” (que o cacófato não traia ninguém).
Outro título
Do lado do governo paulista, o alongamento das pernas da mentira conta com o luxuoso auxílio dos eufemismos de ocasião. Providencialmente rebatizada de “crise hídrica”, a falta d’água aparece como um fenômeno imprevisível. É como se não tivesse sido fabricada pela incompetência e pelas falhas de um sistema de dutos que deixa vazar quase quatro de cada dez litros de água tratada – isso antes que a pobre água chegue à casa dos crédulos eleitores. A “crise hídrica” entra em cena como um revés climático que simplesmente caiu do céu, o mesmo céu do qual as chuvas não caem mais.
Na escola política da mentira frontal e afrontosa (a mentira retumbante que não precisa mais dissimular coisa alguma, nem a si mesma), a expressão “crise hídrica” é um disparate que fala javanês. Com termos empolados, esconde até mesmo a noção de escassez. Em lugar de “escassez hídrica” (que seria um eufemismo igualmente ridículo, mas nem tão mentiroso assim), é mais conveniente falar em “crise”. É como se ninguém tivesse culpa de nada. Crises, afinal de contas, acontecem pela combinação caótica de fatores independentes uns dos outros, que não estavam sob o controle de uma organização minimamente racional. Uma crise política resulta da confluência de tensões que desgraçadamente explodiram. A mesma coisa se pode dizer das crises financeiras. Elas não têm autores definidos, seus causadores são relativamente difusos. A expressão “crise hídrica”, portanto, faz parecer que a calamidade pública não tem responsáveis.
A outra vantagem para o poder é que essa expressão, “crise hídrica”, induz o crédulo eleitor a pensar que, a exemplo do que acontece nas “crises políticas” ou nas “crises financeiras”, os políticos e os governantes são os artífices da solução. Nesse caso, porém, as autoridades que aí estão são justamente a causa principal do problema, mas disso se esquece. Nada mais cômodo hoje para os governantes (estaduais e federais) do que chamar de “crise hídrica” a escassez que eles mesmos fabricaram.
No fim das contas, a expressão “crise hídrica” – essa pérola da política que se especializou em dar nomes que são o oposto das coisas que nomeiam – funciona como uma anistia por antecipação. A falta d’água foi meticulosa e persistentemente construída por um misto de desmando, oportunismo e inconsequência governamental. Chamá-la agora de “crise hídrica”, como algo que caiu do céu, equivale a absolver sem julgamento os (maus) gestores que a provocaram.
Se pudessem, esses mesmos gestores mudariam o título do clássico de Graciliano Ramos Vidas Secas. Se dependesse deles, o livro passaria a ser editado com o nome de “Vidas Hidricamente Críticas”.
Como as nossas.
E você? Tem sede de quê?
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP