É de primeiríssima necessidade que tomemos conhecimento da tese Violência e singularidade jornalística: o massacre da Expedição Calleri (2013), defendida pela professora, jornalista e doutora em Comunicação Verenilde Santos Pereira, na Universidade de Brasília. Nas palavras da autora, expressas no resumo da pesquisa, “essa tese analisa os limites que a singularidade – considerada por Adelmo Genro Filho (1987) como a matéria-prima do jornalismo – oferece para a inteligibilidade de acontecimentos complexos que necessitam de uma contextualização consistente e da divulgação da estrutura de sentidos de onde os acontecimentos emergem”. O objetivo da pesquisadora foi destacar e comentar os procedimentos discursivos presentes e ausentes na cobertura jornalística sobre o “massacre da Expedição Calleri”, ocorrido em outubro de 1968, no percurso da estrada BR-174, que liga Manaus a Boa Vista. Mais um triste capítulo de desrespeito às comunidades indígenas, impetrado autoritariamente no Brasil desde o período colonial, vitimando, desta vez, os Waimiri-Atroari, que foram acossados pela expedição católica chefiada pelo padre italiano Giovani Calleri, empenhada em retirá-los do percurso da referida estrada que cortou ao meio as terras daquele povo violentado em seus direitos.
À luz do conceito de “banalidade de mal”, desenvolvido pela filósofa Hannah Arendt para compreender a alienação bárbara presente nas atitudes maléficas que protagonizaram o genocídio em pleno regime nazista, Verenilde Santos Pereira, argutamente, observa semelhante fenômeno na perseguição dirigida aos indígenas no Brasil. É chocante que desde os tempos coloniais vincula-se o estigma de bárbaros às comunidades indígenas. Atitude cometida pelos ditos “civilizados”, autores de um cruel etnocentrismo de alcunha colonizadora. Choca, por exemplo, o parecer ignorante de Pero Magalhães Gandavo, ao tentar compreender os hábitos sociolinguísticos da nossa população nativa. Evidente, na observação do referido intelectual, em História da província Santa Cruz (1576), a contaminação patrimonialista e religiosa portuguesa, no sentido de subjugar os indígenas, negativizando-os, conforme a regra metropolitana de conduzir geopoliticamente as relações com a colônia brasileira: “A língua de que usam toda pela costa é uma […] carece de três letras, convém a saber, não se acha nela f, nem l, nem r, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei: e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medido” (cap. 10, fl. 33v.).
Com a leitura da tese de Verenilde Santos Pereira, ficam ainda mais sugestivos os versos de Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar (1983), canção de Jorge Ben Jor, dirigida criticamente a uma era marcada, a um só tempo, por sinais de irrupção de um nazismo jeca e pela preocupação com a identidade cultural em um mundo globalizado: “Todo dia/Toda hora/Era Dia de Índio/Mas, agora eles só têm um dia/O dia 19 de abril”. Com esse simples bordão, o artista cantou a marginalização sofrida pelos indígenas desde a época do Brasil Colônia. A pesquisa da jornalista amazonense se alinha a um conjunto de estudos esclarecedores acerca dos massacres sofridos constantemente pelas comunidades indígenas. Em 1492, havia na América cerca de 50 milhões de habitantes, pouco menos do que na Europa. Em pouco tempo, com a chegada de Colombo, os 25 milhões de nativos do planalto mexicano foram reduzidos a dois milhões; nos Andes, dos 10 milhões sobrou apenas 1,5 milhão em fins do século 16. No Brasil não foi diferente: em 1500, a população indígena era de seis milhões; hoje ela está reduzida a 896.917 habitantes, representando 0,47% da população nacional.
Intolerância e pensamento único
Tragédia tão grande quanto o genocídio é o esquecimento das formas de pensar e viver das sociedades indígenas. Quando Davi Ianomâni diz que “os brancos desenham as palavras porque o seu pensamento é cheio de esquecimento”, ele está pondo sob suspeita a nossa história escrita, a começar pela própria ideia de descobrimento. Os brancos são “engenhosos”, alerta Ianomâni. “Eles dizem: ‘Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos importantes! (…)’. Mas eu, filho dos antigos ianomâmis, habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve ali, antes de mim. Eu não digo: ‘Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo! Ela existe desde sempre, antes de mim.’ Eu não digo: ‘Eu descobri o céu!’ Também não clamo: ‘Eu descobri os peixes, eu descobri a caça!’”
Essa visão de pertencimento territorial é, portanto, inteiramente diferente daquela que vê no ato de “descobrir” um princípio de posse e propriedade. Na História de Lince, livro em que o antropólogo Lévi-Strauss descreve os mitos dos gêmeos entre os europeus e os ameríndios, essa diferença da ideia de descobrimento fica exposta de maneira evidente: enquanto nos mitos ocidentais o que se procura é a identidade entre os gêmeos, nos mitos das sociedades indígenas o que se busca é a diferença entre eles. Dessa maneira, diz Lévi-Strauss, no pensamento ameríndio a sua própria existência implicava, também, a existência dos não-índios. Muito antes da descoberta do “Novo Mundo”, o lugar dos brancos já estava marcado no sistema. Isso explica a forma acolhedora com que os “índios” receberam os brancos no primeiro momento. Basta reler as narrativas dos primeiros viajantes. Os indígenas já estavam preparados não apenas para receber o outro, mas também para reconhecer o outro como diferente. O mesmo não se pode dizer dos ocidentais: intolerância e pensamento único foram suas expressões nestes 514 anos. Os alicerces do que somos hoje foram construídos com o massacre indígena e o esquecimento de sua forma de pensar e organizar as sociedades de maneira diferente.
>> Link da tese de Verenilde Santos Pereira: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14140/1/2013_VerenildeSantosPereira.pdf
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Marcos Fabrício Lopes da Silvaé professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários