Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Escrúpulos jogados às favas

Quem conhece como funciona uma redação de jornal não se surpreenderia com a situação. A surpresa é quanto ao procedimento: tradicionalmente, as ordens para manipular o noticiário, por mais abjeção e revolta que causem, costumam ser verbais. Daí o espanto diante da notícia de que a direção de jornalismo da Globo enviou mensagem escrita determinando o corte de qualquer referência ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nas mais recentes denúncias da Operação Lava Jato, que investiga a corrupção na Petrobras.

O e-mail com essa orientação foi inicialmente divulgado no blog de Luís Nassif (ver aqui), no domingo (8/2), e logo se espalhou pela internet:

“(…) a diretora da Central Globo de Jornalismo, Silvia Faria, enviou um e-mail a todos os chefes de núcleo com o seguinte conteúdo:

‘Assunto: Tirar trecho que menciona FHC nos VTs sobre Lava a Jato

Atenção para a orientação 

Sergio e Mazza: revisem os VTs com atenção! Não vamos deixar ir ao ar nenhum com citação ao Fernando Henrique’.”

Segundo Nassif, “o recado se deveu ao fato de a reportagem ter procurado FHC para repercutir as declarações de Pedro Barusco [ex-diretor da Petrobras, um dos que fizeram acordo de delação premiada] – de que recebia propinas antes do governo Lula”.

As declarações constam de depoimento prestado em novembro do ano passado, mas apenas agora liberado. Barusco diz que começou a receber propina “em 97 ou 98”, mas esse trecho não apareceu imediatamente nas reportagens dos canais da Globo. O caso recebeu tratamento diferente no Jornal Nacional e nos jornais da GloboNews.

Recapitulando

As primeiras reportagens foram ao ar na tarde de quinta-feira (5/2). Na GloboNews, a primeira matéria (ver aqui) não faz referência ao período anterior aos governos petistas, mas à noite, no Jornal das Dez (aqui), essa menção é explícita e repetida no dia seguinte. Na tarde do dia 6/2, em matéria cujo link chama para o título “Ex-gerente da Petrobrás diz que começou a receber propina em 1997” (aqui), a repórter lembra que “na época o país era comandado pelo PSDB”, mas ressalva que, sobre esse período, “o ex-gerente da Petrobras não deixa claro se recebeu propina a pedido de alguém ou de algum partido político”.

Na longa reportagem, de quase seis minutos, em que começou a tratar do caso, em 5/2, o Jornal Nacional utiliza seus habituais recursos de infografia para detalhar como funcionava o esquema denunciado por Barusco, mas omite a referência ao período de FHC. Pelo contrário, destaca, no infográfico, o pagamento de propina “em 90 contratos, entre 2003 e 2013, nos governos Lula e Dilma”. Apenas no dia seguinte, em reportagem um pouco menos longa (quatro minutos e meio, ver aqui), o JN menciona que o denunciante diz ter começado a receber propina “em 97 ou 98, durante o governo Fernando Henrique Cardoso”, mas também ressalva que ele “não esclareceu se o dinheiro recebido naquela época era destinado ao PSDB, partido do então presidente da República, ou a alguma aliança que o apoiava”. No sábado (7/2), o jornal anuncia que Fernando Henrique comentou “por escrito” o depoimento de Barusco (ver aqui), eximindo o seu governo de responsabilidade na história.

Deixando rastros

As reportagens informaram que os envolvidos cuidavam de não deixar rastros. Tampouco o tipo de ordem que partiu da direção de jornalismo da Globo deveria deixá-los. Mas deixou.

Seria improvável pensar que, nesses tempos de internet, o e-mail não vazaria. Mesmo considerando a hesitação dos jornalistas em denunciar o que ocorreu, por medo de perder o emprego.

Assim, a divulgação do e-mail só complicou as coisas para a empresa, ao menos em relação ao público minimamente atento, quando o Jornal Nacional pediu desculpas, em sua edição de segunda-feira (9/2, ver aqui),por ter insinuado que um dos ex-diretores da Petrobras, Guilherme Estrella, estaria comprometido no esquema de propina, quando o próprio denunciante o isentava.

Outras coisas viraram motivo de galhofa: por exemplo, a vinheta da GloboNews sobre o pedido do PT de “investigações na Lava Jato no período que antecede o governo petista”. Como disse o jornalista Eduardo Souza Lima em seu mural no Facebook, “não é nada disso, pessoal, eles só quiseram abreviar para caber na chamada. Afinal, ‘período que antecede o governo petista’ é bem mais curto do que ‘governo FHC’.”

Outro erro – que provavelmente foi mesmo um singelo erro de digitação, como tantos os que ocorrem e não deveriam ocorrer, pelo menos não com tanta frequência – ganhou outra conotação durante a cobertura do acidente com o navio-plataforma da Petrobras, na quarta-feira (11/2), em Aracruz, Espírito Santo: ao recapitular outros acidentes, a GloboNews divulgou, também em vinheta, que a explosão e o afundamento da plataforma P-36, na Bacia de Campos, que deixou 11 mortos, tinha ocorrido em 2011 (governo Dilma, portanto), e não em 2001 (portanto, governo FHC).

Pela culatra

Ao anunciar, em 11/2, o pedido da liderança do PT na Câmara para a ampliação das investigações da CPI da Lava Jato para o período anterior a 2003, considerando o depoimento de Barusco, o Jornal Nacional conclui a nota dizendo que “o Ministério Público Federal informou que se pauta pela isenção em suas investigações e não faz distinção de datas, prazos ou gestores”.

A mesma isenção deveria pautar o jornalismo, como as próprias empresas fazem questão de reiterar em seus princípios editoriais.

Sabemos que nunca foi assim, mas quando há um documento escrito apontando na direção oposta a denúncia quanto à manipulação é mais contundente. Assim, o e-mail disparado pela diretora de jornalismo da Globo teve efeito contrário e só ajudou a piorar a imagem da empresa, pelo menos entre os que têm alguma capacidade de discernimento e não se contentam com a primeira informação que recebem.

Mas, de fato, não é a primeira vez. Em março de 2010, quando representantes das empresas de comunicação se reuniram para discutir a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos, a então presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Judith Brito, afirmou que os meios de comunicação “estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada”.

Tratava-se de uma defesa do que as empresas entendem por liberdade de imprensa, por oposição à proposta do governo – e de muitos movimentos sociais, há muitos anos – de “controle social da mídia”.

Assumir-se como porta-voz da oposição significava, evidentemente, abandonar a posição de fiel da balança que as empresas de comunicação se arrogam, pelo menos desde a redemocratização.

A recente orientação para excluir qualquer menção ao ex-presidente Fernando Henrique do noticiário sobre corrupção na Petrobras não deveria mesmo causar espanto. Mas não deixa de ser uma forma de mandar às favas todos os escrúpulos de consciência.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)