O carnaval, principal manifestação popular de nosso país, é capaz de despertar os mais diversos tipos de sentimento. Segundo o antropólogo Roberto DaMatta, o carnaval é essencialmente igualitário, pois permite uma subversão positiva da ordem social, onde ricos e pobres brincam no mesmo espaço, sem as rígidas hierarquias cotidianas. Em contrapartida, para aqueles que odeiam a festa, a palavra carnaval é quase sinônimo de vadiagem, violência, bebedeira e promiscuidade. Conforme noticiado pela imprensa, problemas como déficits públicos, salários atrasados de servidores e intempéries relacionadas ao abastecimento hídrico foram alguns fatores que fizeram com que muitas prefeituras cancelassem a programação carnavalesca oficial deste ano.
Não obstante, tais acontecimentos encorajaram setores conservadores de nossa sociedade a pregarem abertamente pelo fim do carnaval. Nas redes sociais, inúmeras postagens indicavam os prováveis benefícios de não se realizar a principal festa popular do Brasil. Em um texto com milhares de “curtidas” no Facebook, o blogueiro Luiz Henrique de Castro afirmou odiar o carnaval, pois nessa época do ano um povo ensandecido, encharcado de álcool e drogas, toma conta das ruas das principais cidades brasileiras. De acordo com o apresentador Danilo Gentili, do SBT, o fim do carnaval melhoraria a imagem de nosso país no exterior, valorizaria a mulher brasileira, diminuiria os números de acidentes de trânsito e contribuiria positivamente em áreas como economia e saúde. Coincidentemente, a polêmica jornalista Rachel Sheherazade, também da emissora de Silvio Santos, ficou nacionalmente conhecida após um comentário em que tecia várias críticas ao carnaval brasileiro. Para os segmentos conservadores, é difícil aceitar um evento em que o papel principal cabe ao povo, e não à elite.
Entretanto, esse protagonismo popular está seriamente ameaçado. Nos últimos anos, temos presenciado um vertiginoso processo de “branqueamento” do carnaval que conta com o total aval da mídia hegemônica. Os desfiles de escolas de samba na Marquês de Sapucaí, que outrora eram momentos que levantavam a autoestima de morados das áreas carentes do Rio de Janeiro, atualmente são mais um palco privilegiado para a divulgação das anódinas celebridades criadas pelos veículos de comunicação. Papéis de destaque, como rainha de bateria, que anteriormente eram preenchidos por moças da própria comunidade de origem das agremiações carnavalescas, agora são ocupados por modelos e atrizes conhecidas do grande público. É a apropriação midiática de uma tradicional manifestação popular: o carnaval carioca cada vez tem se adequado mais à chamada “sociedade do espetáculo”. Lembrando uma irônica observação do cineasta e jornalista Olívio Petit, devido à presença cada vez menor de afrodescendentes no sambódromo, daqui a alguns anos deverão ser criadas cotas para negros nas escolas de samba do Rio de Janeiro, como já acontece nas universidades brasileiras.
Ideologia elitista
Por outro lado, o carnaval também é uma excelente oportunidade para campanhas publicitárias machistas (principalmente relacionadas a bebidas alcóolicas) e para a mídia hegemônica reforçar antigos estereótipos libidinosos relacionados à mulher de cor. Como bem asseverou a ativista feminista Jarid Arraes, “sempre que a vinheta carnavalesca da Globo é exibida na televisão, o Brasil reafirma sua herança racista e misógina. Não é difícil compreender onde mora o racismo do Globeleza: a Rede Globo seleciona somente mulheres negras para que representem a sexualidade do Carnaval, que, como sabemos, está relacionada ao sexo considerado ‘promíscuo’; ou seja, ano após ano, a mulher negra é associada a um objeto sexual descartável”.
Evidentemente, não se pretende fazer aqui uma apologia cega e incondicional do carnaval ou tampouco incentivar a paranoia “politicamente correta” pela mudança das letras de clássicas marchinhas que abordam minorias como gays, lésbicas e negros. Relativismo cultural à parte, é preciso reconhecer que as festas carnavalescas dos dias hodiernos têm sido canais para a propagação de músicas popularescas de péssimo nível: os famosos “hits descartáveis”. Entretanto, defender a anulação dessas comemorações é contribuir implícita ou explicitamente para acabar com uma das únicas fontes de diversão à qual a sofrida população pobre ainda tem direito no Brasil. O cidadão comum, extremamente explorado pelo sistema econômico vigente, trabalha duro o ano inteiro e deve ter seus momentos de catarse. Um sujeito pode apreciar ou não o carnaval (ao contrário do que dizia Caymmi, quem não gosta de samba também pode ser bom sujeito), porém querer privar grande parcela da população do direito a “uma alegria fugaz” é uma postura demasiadamente autoritária. Ademais, não podemos atribuir supostos aspectos negativos de nossa sociedade ao carnaval.
Quatro dias do ano não são suficientes para definir os rumos da economia, desejos sexuais são inerentes à natureza humana, embriaguez ou violência independem dos feriados em fevereiro e o grande de número de mortes no trânsito está ligado, sobretudo, a adoção quase exclusiva do modelo rodoviário em detrimento de outras alternativas viárias. Em suma, não nos iludamos, o discurso anticarnaval atende a uma ideologia elitista bem clara: os membros da população pobre existem exclusivamente para a reprodução do capital, através do trabalho alienado, jamais devem utilizar suas energias para atividades improdutivas, como os “prazeres da carne”.
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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG